A temática das galinhas a fugirem de pobres com pedaços de côdea no bico parece ter muito de político mas é sobretudo poético. Agradecemos as imagens de Fernando Nobre e do camarada Chico Lopes, mas sobre esse tema em concreto preferimos Alexandre O'Neill:
Histórias quadradinhas: o provérbio chinês
O pobre corre atrás da galinha.
A galinha, còcòri-pescoceando, foge-lhes sobre
os dois garfos, sobre as duas baquetas
em rajada de baterista. «Vale a pena!
Vale todas as penas!», silva bronquiticamente o
pobre. A galinha derrapa, quilha de rojo.
O pobre joga-lhe para cima o maxi-farrapo da jaqueta.
Falha. Vai de gengivas ao chão. A galinha
reencorpora-se, estica os garfitos, sacode
a asa. Do bico sai-lhe um balão:
QUANDO O POBRE COME GALINHA...
«Isso é um provérbio chinês!, indigna-se,
queixos no pó, o pobre.
E a charlotada termina - quadradinho que
se segue - com a galinha toda coqueta,
afastando-se (à bandarilheiro contemplado
com música?) e fazendo estourar, fumaça de vaidade,
outro balão:
... UM DOS DOIS ESTÁ DOENTE.
Há umas semanas, duas ou três, liguei ao comandante Azevedo Soares, para saber se tinha memória de um facto antigo que eu precisava de confirmar para um artigo. Atendeu-me com a mesma simpatia e disponibilidade de sempre, mesmo quando eu ligava com perguntas chatas e depois ficávamos a discutir a ver quem tinha razão. Mas não era o mesmo, era uma voz sumida, nunca o tinha ouvido assim. Que voz é essa? Disse-me que estava doente. Eu disse que não era nada, que não queria incomodar. Não perguntei que doença era. Mas ele quis responder. Falámos então do assunto que motivou a chamada. Ele não se lembrava exctamente do facto em causa, mas por dedução acabou por me dizer o que realmente se tinha passado. Confirmei depois e fazia todo o sentido. Hoje soubemos todos da notícia triste da sua morte, para mim inesperada. Fica aqui a minha homenagem a um homem com quem eu gostava de conversar.
Top elaborado segundo este critério: quando a realidade ultrapassou aquilo que se poderia escrever numa crónica destas.
'Freak': anormal, bizarro, atípico, aberrante, esquisito, excêntrico, sem paralelo
1. Ricardo Rodrigues rouba gravadores É o campeão da Freakpolitics. O gesto habilidoso da tomada de posse dos gravadores da SÁBADO - sem que os jornalistas dessem conta -, define melhor o perfil do socialista Ricardo Rodrigues que milhares de caracteres de prosa sobre as suspeitas do seu envolvimento em negócios escuros nos Açores. Porém, mais freak foi a reacção do PS e dos outros partidos: ninguém exigiu consequências. Muito estranho, muito estranho mesmo.
2. Ricardo Rodrigues faz leis que funcionam ao contrárioO deputado socialista (com Luís Montenegro, do PSD) coordenou as alterações à lei do financiamento dos partidos com a justificação de baixar os gastos nas campanhas. Na prática, a lei funciona ao contrário: deixa que os gastos aumentem sem limite; permite que as campanhas dêem um lucro que pode ficar para quem os candidatos quiserem, apesar de o diploma dizer que o excedente é para o Estado. Ainda escancara a porta à distribuição de malas de notas aos partidos e abre alas à lavagem de dinheiro. O mais bizarro: Cavaco promulgou.
3. A gente é mais bolaEste caso ganha o prémio da excentricidade. Mário Lino, ex-ministro das Obras Públicas, foi à comissão de inquérito parlamentar sobre a tentativa de compra da TVI por parte da PT dizer o seguinte: Rui Pedro Soares, administrador da PT, ia ao gabinete dele, aos fins-de-semana, para falar da jornada de futebol e dos problemas pós-parto da mulher. Embora Lino fosse o ministro da tutela, nunca falavam da PT, nem da eventual compra da TVI para afastar Manuela Moura Guedes. Isso é que não.
4. Passos e o crime políticoPedro Passos Coelho defendeu a criminalização dos políticos que não cumpram os orçamentos (como José Sócrates). Repetiu a ideia duas vezes e calou-se. Se alguma vez a medida fosse implementada, já estávamos a ver os primeiros-ministros e os ministros das Finanças na cadeia no fim dos mandatos. Uma ideia muitíssimo anormal.
5. A estranha negociação do OEO acordo para aprovar o Orçamento do Estado mais importante da história da democracia foi assinado em casa do representante do PSD, que nem é filiado no partido. Antes disso, houve cenas edificantes como Eduardo Catroga “à seca” no Parlamento a dizer que tinha de se ir embora cuidar dos netos. Note-se que Catroga conseguiu que os produtos da Solvena, grupo que administra, não aumentassem o IVA. Não lembra ao careca, diria Marcelo Rebelo de Sousa.
6. O cata-vento determinadoDá-lhe o vento e o primeiro-ministro tem a certeza absolutíssima de estar a apontar para o lado certo. Passou o ano cheio de certezas quanto ao caminho a tomar, mesmo quando os ventos da crise internacional e de Bruxelas o obrigavam a ir na direcção oposta ao que prometera no dia anterior. Aumento dos impostos, corte nos salários, congelamento de obras etc. Duas frases ficam nos anais: “O pior que pode acontecer a um político é quando tem um plano pensar mudá-lo quando encontra uma dificuldade. Eu não sou desses”. A outra é: “O Governo não entra em desnorte nem muda de orientação política”. Claro que não.
7. O PSD é contra mas está a favor A liderança de Manuela Ferreira Leite começou o ano a abster-se no Orçamento do Estado para 2010 que tinha as medidas que ela diabolizava. A seguir viabilizou o PEC1. Depois veio o PSD de Pedro Passos Coelho, que era contra o aumento de impostos, votar a favor do PEC2 que os aumentava. Acabou a viabilizar o OE para 2011 em nome da Pátria. Um ano atípico. 8. Rating de rabo na bocaAs agências de notação financeira começaram a baixar o rating de Portugal porque o défice e o endividamento eram insustentáveis. O Governo apresentou o primeiro pacote de austeridade, mas o rating voltou a baixar porque as medidas eram recessivas e a economia do País não ia produzir o suficiente para pagar as dívidas. Mas como a economia não ia crescer, tornava-se ainda mais difícil pôr as contas em ordem e assim o rating voltava a descer. O Governo tomava mais medidas draconianas e assim a economia...
9. O corruptor ofendidoSituação da categoria aberrante. No mesmo dia em que o Parlamento debatia o pacote anti-corrupção, o Tribunal da Relação absolvia o empreiteiro Domingos Névoa, que foi apanhado numa gravação da Judiciária a tentar corromper José Sá Fernandes através do seu irmão e advogado Ricardo. 10. Cavaco condecora SantanaO Presidente da República que antes de o ser contribuiu para a queda do Governo de Pedro Santana Lopes em 2004 com o artigo da má moeda, atribuiu ao ex-primeiro-ministro a Grã-Cruz da Ordem de Cristo. Parece que foi por serviços relevantes à Pátria que Cavaco tinha antes classificado - de forma abstracta - como pior que irrelevantes.
Publiquei este post há quase um ano. É ler e pensar, ou ler e penar: um deles conhecia a realidade, mas mascarava-a de optimismo surreal, procurando enganar-nos a todos com doces palavras; o outro conhecia a realidade e denunciava-a, mas deixava-se ficar e não fazia mais nada. No fundo, do ponto de vista moral as duas atitudes são parecidas. Do ponto de vista prático as duas atitudes levaram ao mesmo.
O post era este:
José Sócrates no discurso de Natal -"A crise económica mundial persiste, é certo, mas há agora sinais claros de que estamos a retomar lentamente um caminho de recuperação. Precisamos de investimento público que crie emprego. Precisamos de investir nos domínios que são essenciais à modernização do nosso país: as infra-estruturas de transportes e comunicações, as escolas, os hospitais, as barragens, as energias renováveis. Precisamos de continuar a apoiar as nossas empresas, com particular atenção às pequenas e médias empresas, às empresas exportadoras, às empresas criadoras de emprego."
Cavaco Silva no discurso de Ano Novo -"Mas o desemprego não é o único motivo de preocupação. A dívida do Estado tem vindo a crescer a ritmo acentuado e aproxima-se de um nível perigoso. O endividamento do País ao estrangeiro tem vindo a aumentar de forma muito rápida, atingindo já níveis preocupantes. Acresce que o tempo das taxas de juro baixas não demorará muito a chegar ao fim. (...) Com este aumento da dívida externa e do desemprego, a que se junta o desequilíbrio das contas públicas, podemos caminhar para uma situação explosiva. Em face da gravidade da situação, é preciso fazer escolhas, temos de estabelecer com clareza as nossas prioridades. Os dinheiros públicos não chegam para tudo e não nos podemos dar ao luxo de os desperdiçar."
Este caso que envolve a Ensitel é exemplar sobre o poder que as redes sociais dão aos consumidores, em compensação pela falta de protecção prestada por quem o devia fazer, começando pela própria empresa e seguindo pelos labirintos insondáveis da justiça portuguesa.
O mais incrível nesta história está no facto de, ao que parece, ninguém com dois dedos de lucidez ter percebido, na Ensitel, que os prejuízos para a imagem junto dos consumidores serão maiores do que o custo de trocar um telemóvel defeituoso, como era a sua obrigação.
Nunca uma mensagem de Natal do Presidente foi tão apelativa. E divertida. E popular: só no youtube foi vista mais de 15 mil vezes! É hilariante a versão rap da mensagem de boas festas do casal Presidencial. A Presidência bem que poderia reforçar o Gabinete de Comunicação e Imagem com a contratação de Rui Unas.
Pianistas, e dos bons, é o que não falta por aí. A questão está em que nem sempre o material que escolhem para os seus discos é o mais estimulante. Os velhos clássicos já foram tão explorados que é difícil arranjar curiosidade suficiente para escutar mais uma abordagem de "Autumn Leaves" ou "All The Things You Are", quando já estão registadas para a posteridade muitas versões que se classificam entre o excelente e o soberbo.
É aqui que entram pianistas de uma nova geração como Vijay Iyer, Mathew Shipp ou Jason Moran, um trio de músicos inovadores que, há poucos meses, foi reunido para o tema de capa da revista "Downbeat". Todos eles tocam ao mais alto nível e preenchem os discos que editam com temas da sua autoria ou leituras menos ortodoxas de material alheio.
Este ano, Vijay Iyer lançou, pela primeira vez na carreira, um disco inteiramente a solo, intitulado, sem surpresa, "Solo". A música é, em geral, mais acessível do que aquela que caracterizou o trabalho anterior de Iyer em trio ou em quarteto, o que não significa que o pianista abdique de procurar construir os temas fora daquelas sequências de notas que estão mais batidas. "Solo" é um disco com horizontes largos e "Patterns" é uma das minhas faixas favoritas, por agora.
Clicar aqui para ver o vídeo em que Vijey Iyer fala sobre a gravação de "Solo".
A Segunda Guerra Mundial continua a fornecer matéria-prima para romances e ensaios. A fonte parece inesgotável para quem, na ficção, queira abordar os impactos de um conflito militar na vida de pessoas comuns. Um livro em que o enredo se desenrole neste ambiente é motivo suficiente para, pelo menos, lhe pegar e tentar perceber se vale a pena ler.
"The Glass Room", que esteve na "short list" do Booker Prize em 2009, foi um destes casos. Na República Checa anterior à Guerra, um casal endinheirado manda construir a casa dos seus sonhos, de acordo com os ditâmes mais vanguardistas da arquitectura da época. O local emblemático da casa é uma sala em aço, vidro e ónix, inspirada num edifício real que pode ser visto neste blogue.
É neste espaço, ocupado, sucessivamente, por diferentes inquilinos ao sabor dos incidentes do conflito que devastou a Europa Central, que têm lugar os episódios mais relevantes do romance de Simon Mawer. Os sonhos de uns são transformados em pesadelos pelas ambições de outros. E uma sala envidraçada, que devia promover a transparência de quem a habita, é o local onde se escondem segredos e traições. O livro foi editado em Portugal com o título "A Sala de Vidro".
Os votos de boas festas que o PSD pôs a circular dizem tudo sobre a "estabilidade governativa" que garantem defender. Que não oferecessem bolo-rei até se entendia. Mas um boletim de voto (com cruzinha preenchida e tudo) em vez dos sininhos, das renas e do Pai Natal? Não me digam que não acreditam que as eleições legislativas são em 2013?
21 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
Pagaria bom dinheiro para ler estes dois livros: uma biografia de Jorge Jardim Gonçalves e uma investigação sobre o BPNgate. Duas histórias - duas belas fatias do regime.
Um disco assinado por um guitarrista de jazz pressupõe solos fartos e provas deslumbrantes de virtuosismo, daquelas que deixam de boca aberta quem escuta. Muitas vezes é isto que acontece mas nem sempre com grande proveito para o consumidor. Há quem toque divinalmente mas que, para além da técnica incontestável, não tenha chama, nem pareça ter alma.
Bill Frisell já se deixou dessas preocupações há muitos anos. Hoje em dia, os seus discos focam-se na música que gosta de tocar, colada às tradições norte-americanas, da folk aos blues e da country ao rock, além do jazz. "Beautiful Dreamers" tem de tudo isto um pouco ao longo dos seus dez temas originais e de seis versões. E tem, também, o som inconfundível da guitarra de Frisell, habitualmente uma simples e básica Fender Telecaster, de onde saem frases curtas, cristalinas e hipnotizantes.
Neste disco, Bill Frisell tem a companhia do violista Eyvind Kang e do baterista Rudy Royston. E a isto se resume a música de "Beautiful Dreamers", tão simples quanto sofisticada, sem outros artifícios que não sejam os talentos de quem a executa. Mais notável, ainda, é o facto de o guitarrista conseguir manter uma qualidade muito elevada nos seus sucessivos discos, apesar de haver anos em que chega a editar dois álbuns novos.
A Fundação Francisco Manuel dos Santos é recente mas já fez muito mais pela organização e a acessibilidade de muita informação estatística sobre Portugal do que décadas de administração pública desleixada e indiferente. O "site" Pordata honra a expressão "serviço público", neste caso praticado, e bem, por privados. E a isto, que já não é pouco, acresenta a edição de livros que analisam diversos aspectos da realidade nacional.
São obras com uma natureza muito prática, de leitura rápida, longe da ambição dos calhamaços académicos, e que visam fazer chegar a informação e a respectiva interpretação a um alvo alargado de pessoas interessadas em saber mais sobre por que estamos como estamos e como podemos sair de onde estamos. Entre os que li, selecciono "Portugal: Os Números", de Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, e "Economia Portuguesa, As Últimas Décadas", de Luciano Amaral. São as duas faces de uma mesma moeda.
No primeiro, observa-se o trilho de sucesso de Portugal nas políticas sociais durante as décadas mais recentes, de que um dos indicadores mais impressionantes entre os vários que são citados é o recuo dramático da mortalidade infantil. No segundo, aborda-se a pesada factura que, em simultâneo, cresceu até colocar Portugal quase ao colo do FMI, em parte como contrapartida de um aumento das prestações sociais até a um nível que está acima das possibilidades actuais da economia portuguesa. Dois livros esclarecedores, sobretudo se a leitura de um for seguida da leitura do outro.
Magnus Mills teve uma entrada triunfante no mundo da literatura. De motorista de autocarros em Londres passou a finalista do Booker Prize, em 1998, com o livro "O Curral das Bestas", o seu primeiro romance. Este e o livro seguinte, "All Quiet On The Orient Express", ainda tiveram direito a versão em português.
Depois, em Portugal abateu-se o silêncio sobre a obra de Mills. É pena, porque a capacidade de observação, a lucidez e o humor deste escritor mereciam mais atenção e divulgação. "The Scheme For Full Employment", por exemplo, é um tratado implacável e hilariante sobre as ineficiências e a inutilidade de muito do que se faz na Função Pública.
"The Maintenance Of Headway", a obra que justifica este "post", desvenda os segredos da gestão de uma rede de autocarros, com a habitual habilidade de Mills para colocar a nu o "nonsense" das grandes organizações. É uma realidade que Magnus Mills conhece bem porque, após o Booker lhe ter dado alguma fama, decidiu voltar a ser motorista de autocarros na capital londrina e manter a escrita como "hobby" lucrativo. Por estas bandas, é um autor de culto.
A biografia é um género pouco cultivado em Portugal. Tem um sucedânio pobre que costuma resultar na edição de livros laudatórios. Visam mais exaltar as qualidades, reais ou virtuais, dos biografados do que fazer um retrato distanciado do percurso e da personalidade.
O livro de Filipe Ribeiro de Menezes, "Salazar, Biografia Política", foge da tradição e mostra como o discreto professor de finanças de Coimbra foi afastando adversários e apoiantes incómodos, acumulando poder e solidão até transformar o Estado Novo numa entidade que se confundia com o seu fundador e que só poderia existir enquanto este existisse. Será difícil fazer melhor.
Se Stuart Murdoch está em grande forma, Isobel Campbell não está pior. Aquela que era a outra metade dos Belle & Sebastian até há pouco anos, encontrou em Mark Lanegan o parceiro certo para um novo projecto que já vai no seu terceiro disco.
Continuo a gostar mais de "Sunday At Devil Dirt" mas "Hawk", lançado este ano, também é um bom disco. O contraste entre a voz aguda e sussurrada de Campbel com o registo grave e assertivo de Lanegan continua a dar óptimos resultados. Neste disco, há mais rock do que nas obras anteriores, mas os blues e a folk continuam a ser a marca mais forte.
Clicar aqui para escutar "You Won't Let Me Down Again".
Começo esta série com "Write About Love", dos Belle & Sebastian. Cada vez escuto menos "pop" porque a maior parte das bandas me soam a mera repetição daquilo que já foi feito e refeito, década após década. Com mais ou menos açúcar, vai quase tudo dar a mais do mesmo.
O que, em geral, me parece diferente nos discos assinados por Stuart Murdoch, é que ele pega nos mesmos truques de sempre mas consegue fazer com que o resultado seja refrescante. Em vez de provocarem tédio pela previsibilidade, as canções deste disco têm um magnetismo que atrai à primeira audição.
Clicar aqui para escutar "I Didn't See It Coming".
Chega-se quase ao fim e ali estão, condensadas em poucos parágrafos, as fraquezas e virtudes de “Sá Carneiro”. Na pág. 606, Miguel Pinheiro (M.P.) relata o último almoço de Francisco Sá Carneiro (F.S.C.), horas antes de morrer. O estilo é o de todo o livro: escorreito, incisivo, impressivo, com pormenores q.b. e diálogos em discurso direto. A história é assim, foi isto que aconteceu — é isso que o autor nos diz.
O último almoço do fundador do PSD foi no Tavares Rico e, para além dele, estavam à mesa o candidato presidencial da direita, Soares Carneiro, e parte do estado-maior da AD: Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, António Capucho, Cunha Rego, Luís Beiroco e Patrício Gouveia. Faltam três dias para as presidenciais e F.S.C. dá tudo por tudo pelo seu candidato, de cuja vitória fazia depender a continuidade como primeiro-ministro (cargo para que fora reeleito dois meses antes). M.P. relata um espantoso diálogo entre F.S.C. e o vice-primeiro-ministro (e líder do CDS), Freitas do Amaral. O presidente do PSD antevê a derrota do seu candidato presidencial (era previsível), reafirma que nesse caso ele e Freitas se demitem (já o tinham anunciado) e continua: “Alguém do meu partido vai aceitar ser primeiro-ministro com o Eanes. Nessa altura, eu abandonarei o PSD e ficarei uns tempos fora da política, a deixá-los espetarem-se.” E vai mais longe: “Não dou mais de seis meses a um ano a esse governo. O Eanes e o Conselho da Revolução não o deixarão governar. Quando isso se tornar patente, fundarei um novo partido, e estou certo de que as bases do PSD virão comigo. E você, Diogo? Aceitaria fazer parte comigo desse novo partido?” Freitas responde: “É claro que sim, Francisco, não hesitava um minuto.”
Num momento crucial da sua carreira política, F.S.C. admitia a derrota do seu candidato presidencial (à frente do próprio!) e anunciava a implosão do seu governo, da sua maioria e do seu PSD, desafiando o parceiro de coligação a ajudar — e isto perante altos dirigentes desses partidos. O problema é que esta fascinante conversa, transcrita entre uma perdiz e um charuto, provavelmente não aconteceu.
Não é a primeira vez que este episódio é relatado nestes termos, que são quase decalcados das memórias de Freitas do Amaral. Mas todos sabemos como a memória trai, sobretudo em causa própria — e já anteriormente as memórias de Freitas foram desmentidas por quem viveu os mesmos acontecimentos (a recente biografia de Amaro da Costa deixa a nu outro episódio em que Freitas tentou engrandecer o seu papel, sendo nesse caso desmentido por Veiga Simão).
O que seria apenas um problema de Freitas passa a ser um problema de M.P.: uma biografia que se apresenta com este fôlego não pode dar como matéria de facto o que não é senão uma versão da História. Bastava ao autor ter feito fact checking básico: podia, por exemplo, perguntar a António Capucho, que também esteve nesse almoço, se aquele diálogo existiu. O antigo secretário-geral do PSD diria o mesmo que nos disse: “Esse relato é totalmente desconchavado. Esse diálogo nunca aconteceu à mesa daquele almoço.” Sendo assim, talvez fosse prudente apresentar as duas versões. Só que isso estragava o ritmo da narrativa e a omnisciência do autor, que só uma vez admite existirem versões contraditórias sobre um acontecimento (pág. 582). M.P. passa ao lado da incerteza e do contraditório e opta pela versão que melhor encaixa na sua história.
Fica a dúvida: quantas vezes o autor fez o mesmo ao longo do livro?
A questão não é se Sá Carneiro pensava aquilo que o autor põe na sua boca. Tudo indica que sim — mas não o terá dito assim, ali. Sintetizar o pensamento de uma personagem num momento simbólico é um recurso comum na literatura e nos seriados televisivos “inspirados em factos reais”. Mas não se recomenda numa biografia que quer ser factual.
Desde as primeiras páginas que M.P. cai nesta tentação de romancear: não admite dúvidas, não poupa nas descrições de estados de alma, não hesita em polvilhar as páginas com diálogos em discurso direto, até entre o bisavô e o avô de Sá Carneiro (pág. 20), em 1861 (!). É uma opção deliberada. Nem é original e facilita a leitura — de facto, o livro lê-se de uma penada —, mas deixa a desejar em rigor.
É pena, pois esta biografia tinha tudo para ser uma das melhores empreitadas do género em Portugal. Há um notável trabalho de pesquisa, recorrendo a inúmeras entrevistas, bibliografia, jornais, registos sonoros de reuniões do PSD, arquivos online e arquivos pessoais nunca antes disponibilizados — nomeadamente o precioso e raro contributo de Isabel Sá Carneiro, que faz o perfeito contraponto entre o homem e o político. Esse material é a base para uma narrativa habilidosa e exaustiva. Por vezes, dá a sensação de que não ficou nada por contar.
M.P. constrói um relato detalhado e épico do percurso de Sá Carneiro, com grandezas e misérias e um manancial de episódios — e consegue entretecê-los sem nunca se desfocar do fio da narrativa. E, mais importante, sem embarcar na mitologia que se construiu em torno de Sá Carneiro. O autor tira-o do andor onde o PSD e o país político o colocaram no dia do seu funeral. Mostra-nos o homem frágil e instável, o combatente inflexível, o político imprevisível, o governante maniqueísta, o estadista visionário, o dirigente autoritário. A história é tão boa que não precisava de ser romanceada.
Crítica publicada no suplemento Atual do Expresso, 19-12-10
A alteração à lei de financiamento político era uma vergonha para o Parlamento e os partidos que a aprovaram, PS e PSD. Passou a ser uma vergonha também para o Presidente da República, que promulgou uma lei cheia de alçapões, que torna o dinheiro dos partidos menos transparente, dificulta o seu controlo, amnistia más práticas e facilita o financiamento ilegal e a corrupção.
A admissão da vergonha está na mensagem que Cavaco enviou à AR, onde dá uma razão para a lei passar (uma poupança conjuntural e pífia), e reconhece duas razões de fundo por que devia ser vetada: 1) a lei “potencia o risco” de lavagem de dinheiro através dos partidos; 2) os partidos podem gastar mais, aproveitando a debilidade da lei. O PR reconhece a verdade, mas recusa-se a retirar a consequência. É a prova de que Cavaco continua integrado no sistema.
17 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
O elitismo foleiro camuflado de preocupação genuína continua, sem surpresas, a ser o prato do dia. Talvez porque seja difícil resistir-lhe. Talvez porque a autosatisfação intelectual gosta de exclusividade e tem orgulho frágil.
Se é com as 50 medidas apresentadas esta semana que José Sócrates quer passar o teste de vida junto dos líderes europeus, então nada sobrará a não ser desilusão. Para consumo mediático haverá palmadinhas nas costas e os elogios habituais, mas nos bastidores seguramente ninguém acreditará no pretenso alcance profundo deste "pacote 50" - não por falta de boas ideias entre as cinco dezenas de medidas, mas porque nenhuma ataca com firmeza qualquer dos problemas estruturais que minam a economia portuguesa.
O governo toca nos problemas ao de leve - ou passa totalmente ao seu lado - porque nesta altura já lhe sobram poucas opções. Não há margem orçamental para baixar significativamente o peso da fiscalidade sobre as empresas ou para pelo menos garantir estabilidade fiscal. E não há margem política para fazer uma das reformas mais necessárias para a economia - a da justiça - nem para aprofundar mais as alterações na lei laboral. Minado à partida por um programa eleitoral irrealista, desgastado por sucessivos tiros nos pés e acossado pela oposição - que se limita a esperar pelo fim e prescinde de apresentar ideias válidas -, o segundo governo PS perdeu capacidade política interna, logo na altura em que o país mais precisa dela.
Luís Amado disse ontem sobre os voos da CIA que não autorizou qualquer "operação de voo de repatriamento" para a libertação de prisioneiros detidos em Guantanamo. O MNE ainda sublinhou que "não existiu qualquer pedido formal para este tipo de operação".
É muito estranho: então Portugal recebeu dois prisioneiros de Guantanamo em Agosto de 2008, mas não existiu qualquer pedido formal para esses os suspeitos de terrorismo aterrarem em Lisboa?
O MNE esqueceu-se de dizer "à excepção do voo que trouxe os prisioneiros para o País...", mas não se percebe por quê.
ADENDA: acabam de me explicar que os voos tendo Portugal como destino pertencem a uma terceira categoria: voos de exílio; não são voos de repatriamento. Mesmo assim, o MNE devia explicar a questão.
Sim, este é mais um post sobre a Madeira. Preferia o estimado leitor que fosse mais um post sobre os Açores, e o subsídio de compensação, e o senhor César isto, e três milhões de euros aquilo?...
Azarinho: na Madeira passam-se coisas muito mais graves, há muito mais tempo, com muito mais dinheiro, e por regra tento não me distrair com pormenores.
Ontem foi o "debate" do Orçamento Regional no Parlamento madeirense. Uma coisa em estilo cubano, com Jardim a discursar durante 1 hora e 55 minutos. O relato do "debate" pode ser lido aqui. É o delírio, como se pode provar com este naco de prosa:
"Jardim garante que a plataforma democrática, criada pelo PS-M, tem influência dos empresários ingleses que descendem, pelo que foi possível perceber do discurso, da maçonaria que veio para a Madeira depois das invasões napoleónicas no século XIX. Uma tese histórica curiosa que justifica, por exemplo, os apoios ao Jornal da Madeira."
Já agora: sabiam que Jardim gasta mais com o subsídio ao Jornal da Madeira do que César vai gastar com o imoral, o imperdoável, o demoníaco subsídio de compensação?
Um militante do PS ou do PSD custa €1 por mês em quotas. É baratinho. Mas é na base da pirâmide partidária que começa a corrupção. Quem dá o dinheiro aos caciques para pagar dezenas de milhares de euros em quotas está a investir e tem expectativas de retorno...
Vi o debate entre Francisco Lopes e Fernando Nobre. O momento alto do frente a frente foi quando os candidatos entraram em compita para saber qual dos dois tinha visto mais desgraças na vida. Fez-me lembrar esta outra competição...
Há um ano ou dois resolvi chatear-me com o Velho Mundo: Com os museus, as bibliotecas, as universidades e as discotecas cheias de jovens chatos e vegetarianos, nada diletantes. E manicures suburbanas, e universitárias iletradas e confusas por não serem meninas bem de dicção afectada, maravilhosa e irritante ao mesmo tempo. E de sindicalistas de meia-tigela e filósofos barbudos de 35 anos, que frequentam jardins gelados para se porem a pensar, a pensar. A pensar sobre o nada e o vazio e o pós qualquer coisa das famílias reais deprimentes desses lugares acima da linha do equador.
Há um ano ou dois que sou feliz longe disso. Só com o pãozinho francês do Talho Capixaba, o sol escaldante dos dias quentes do Rio de Janeiro, onde os políticos são ladrões, mas não de meia-tigela, os facínoras são facínoras, o feijão é preto, a maconha dá tesão, a chuva cai direita, o Fluminense é campeão para regozijo meu e do Nelson Rodrigues e o Ferreira Gullar diz, naquele seu riso tão característico e nas tintas para o tempo, que não quer ter razão, só quer é ser feliz.
Nestes tempos sombrios, de recessão e depressão, em que nada parece seguro e todas as referências parecem perder-se, é reconfortante saber que podemos sempre contar com AJJ para nos provocar uma boa gargalhada. A sua reacção ao subsídio de compensação para os funcionários açorianos, criado por Carlos César, é a anedota do ano. Como dizia alguém, o problema das anedotas políticas é quando elas são eleitas.
AJJ a acusar de César de "demagogia" e de "caça ao voto" é como o Croquete a acusar o Batatinha de ser um palhaço - parece uma crítica, mas é um elogio vindo de quem sabe. AJJ apontar a outro governante uma "ilegalidade", qualquer "incoerência" e algumas "fantasias" é como a Ciciolina a acusar a vizinha do 2º esquerdo de ser uma desavergonhada - talvez seja despeito, é de certeza falta de vergonha na cara.
Num ponto AJJ tem razão: é uma incoerência votar a favor do Orçamento em Lisboa para depois não o aplicar nas ilhas. Mais do que incoerência, é hipocrisia política do melhor calibre. O PS-Açores fez isso, o PS-Madeira propõe o mesmo. Felizmente AJJ não cai nessa de ser incoerente. Recebeu de Sócrates uma prenda de Natal antecipada no OE, que lhe dá carta branca para gastar como bem entenda as verbas da Lei de Meios. Como votou contra o OE presume-se que AJJ, em coerência, não gastará um cêntimo da verba da Lei de Meios.
Os comentários de AJJ sobre o caso dos Açores sinalizam, no mínimo, o seu incómodo. Não é difícil perceber porquê. O imbatível mestre da "caça ao voto" nas ilhas perdeu o exclusivo da patente dessa arte. A "demagogia" de César veio recordar-nos que os governos regionais têm a legitimidade do voto e a responsabilidade da escolha. E que gerir um orçamento é fazer opções. César fez a sua: vai manter o salário de uns milhares de funcionários regionais e vai reforçar certos subsídios sociais. Isso custa menos dinheiro ao orçamento regional do que aquilo que o GRM torra, por ano, com o seu jornal oficial de propaganda. E infinitamente menos dinheiro do que aquilo que vai custar a simpática oferta de um estádio ao Marítimo. A comparação incomoda.
"Caçar o voto" não tem de significar esburacar ilhas de cima a baixo e atapetá-las de cimento. Acumular calotes a fornecedores e dívida à banca. Deixar a sociedade e a economia ligados à máquina do poder regional. Inventar malabarismos jurídicos e financeiros para "fazer obra" - alguma necessária, muita inútil, toda com dinheiro que não se tem.
Pela lógica de AJJ, governar é escolher a maneira de "caçar o voto". AJJ e sus muchachos há muitos anos que fizeram a sua escolha. Tudo indica que não sabem, não querem, nem têm liberdade para fazer outra.
12 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
A conversa era sobre a eventual evolução da China para a democracia. Céptico, o meu amigo chinês apontou que as democracias ocidentais se deixaram paralisar pela rigidez das posições da esquerda e da direita. Para ele, a guerrilha surda entre ambas as partes torna o debate público impermeável ao cruzamento útil de ideias e mais longe da resolução dos problemas. Na China não há democracia, mas isso não significa que o autoritário governo chinês não tenha de prestar contas. Afinal, o país tem 1,3 mil milhões de pessoas e a frágil estabilidade social só está garantida enquanto o governo cumprir a sua promessa de prosperidade económica. Sem esse obstáculo da "democracia", continuou o meu amigo, o Executivo adopta políticas da esquerda à direita, preocupando-se não com os rótulos, mas com a eficácia. "Não interessa se o gato é branco ou preto desde que cace ratos", como declarou Deng Xiaoping.
Para a maioria dos europeus - até para os portugueses, que em mais de 860 anos de história contam só com 35 anos de democracia - esta troca de direitos e liberdades individuais por um PIB a crescer e um governo pragmático deixou (até ver) de ser aceitável. Mas tenho recordado várias vezes os argumentos do meu amigo de Pequim: nesta era de austeridade sobe de tom a música das cassetes ideológicas de uma certa esquerda e de outra certa direita. O resultado de um combate político nestes termos é uma democracia mais pobre.
A legenda à fotografia de Vieira de Silva na página 4 do Expresso de hoje é de muito mau gosto.
Na imagem surge o Ministro da Economia de pé, em frente a um microfone, no Palácio de São Bento. Vieira, enquanto responde aos jornalistas, fixa com o olhar um Código do Trabalho que está em cima de uma das cadeiras da sala (foto de Tiago Miranda).
E eis a legenda que o Expresso escolheu para acompanhar a foto: "Vieira da Silva com um olho no código do trabalho e outro nas suas alterações. Mudar sem pôr em causa o original, eis a questão".
O mundo mudou e é preciso saber viver nele: no último 24Horas, o Jack Bauer andou em bolandas com uma pen para divulgar umas filmagens muitos sensíveis que denunciavam um presidente russo e deu a pen a uma jornalista da imprensa tradicional, que depois teve problemas com editores, o jornal foi pressionado, etc.: hoje, de certeza que os argumentistas se lembrariam do WikiLeaks, da mesma maneira que eu quando vi o episódio me lembrei da internet (mas porque é que ele não mete aquela porcaria no you tube?).
Percebo que políticos e funcionários de alguns departamentos estatais - de todo o mundo - fiquem aterrorizados com o WikiLeaks. Mas críticas de jornalistas ou de gente dos media não compreendo. Quem não adorava ter tido acesso ao telegrama da embaixada norte-americana sobre os voos da CIA em Portugal? Ou as ordens de Hillary Clinton para se espiar o secretário-geral das Nações Unidas? Ou que a Arábia Saudita queria que os americanos bombardeassem o Irão? A grande diferença é que um jornalista tem acesso a uma quantidade limitada de informação, normalmente relacionada com a área que trabalha. Documentos deste calibre seriam uma grande história em qualquer jornal. A partir do momento em que um jornalista tivesse em seu poder qualquer um daqueles documentos tinha a obrigação profissional de o publicar.
O que o WikiLeaks muda para sempre é a capacidade de distribuição que o meio permite: é um grossista que distribui em larga escala aquilo que um jornalista nunca conseguiria fazer ao longo de uma carreira. A triagem, selecção e tratamento da informação deve ser feita pelos jornalistas, não é feita pelo WikiLeaks, que apenas proporciona a plataforma e mantém as fontes secretas. Tem perigos? Tem. Pode ser manipulado, por exemplo por serviços secretos que falsificam documentos para fazer contra-informação. Mas a esse risco também a imprensa tradicional está exposta.
Já os danos que estas revelações podem provocar parecem limitados. Entre as diplomatas todos sabem que se funciona assim, com aquele tipo de comentários e análises, portanto, danos diplomáticos sérios não haverá. Quanto a problemas - porque há sempre dois lados - questões levantadas aqui e aqui - é pertinente e tem a ver com o volume de informação bruta libertada, que permite aos serviços secretos de todo o mundo descobrirem padrões de comunicação e até pessoas e fontes que ficam em risco. Outra diferença entre o WikiLeaks e o jornalismo é que um jornalista pode divulgar informação secreta por ser relevante e de interesse público, enquanto o WikiLeaks revela informação secreta apenas para revelar informação secreta.
A administração Obama jazia hirta e fria depois de proibir os funcionários públicos de lerem documentos revelados pelo WikiLeaks - publicados na net ou em jornais - que tenham classificações a que eles não podem aceder. Ou seja: os únicos totós do mundo são os funcionários norte-americanos, aqueles para quem é suposto os segredos continuarem secretos.
Imagino o que se estaria a dizer e a escrever (incluindo eu próprio) se estes atentados contra a liberdade de expressão e de imprensa a propósito do WikiLeaks se passassem na China. Se o Assange tivesse revelado 250 mil documentos secretos chineses não estava preso nem tinha umas suecas malucas à perna. Era um herói americano.
07 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
Pouco a pouco vai caindo a ficção segundo a qual Portugal e o seu respectivo governo a) não precisam de ajuda financeira externa e b) não aceitam sugestões de ninguém. Portugal precisa de ajuda financeira e está a tê-la. Vem pela porta das traseiras, do Banco Central Europeu, que tem ido às compras no mercado secundário de obrigações e emprestado dinheiro barato aos bancos portugueses. E Portugal aceita sugestões precisamente porque já está a receber ajuda financeira. O graveto vem com condições. É por isso que quando o presidente do BCE e os políticos em Bruxelas dizem "vocês precisam é de reformar a vossa lei laboral", o primeiro-ministro Sócrates diz a seguir que o governo vai olhar "para as potencialidades do Código Laboral". Mesmo que, com o talento extraordinário que se lhe reconhece, venda essas mudanças como uma fantástica ideia do governo.
Não. O salário mínimo vai além dos modelos económicos que se autoequilibram e da conversa conceptual sobre "o mercado". Criar um salário mínimo significa compreender a natureza do homem - neste caso do homem-empresário - e exercer sobre ela uma certa autoridade, corrigindo naturais maus comportamentos. Não vejo onde isto está totalmente divorciado de um pensamento de direita. [Até em Hong Kong - lugar insuspeito de tendências marxistas - se percebeu isto e decidiu, em 2010 (!), criar um salário mínimo garantido.]
03 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
Concordo. E não entendo o argumento "as empresas só fazem o mesmo que os particulares que, por exemplo, antecipam para 2010 a compra do carro para evitar o agravamento do imposto" - um argumento que pretende justificar a decisão das empresas do ponto de vista ético, mas que confunde impostos sobre o consumo com impostos sobre o rendimento (que é a base da tributação).
Adenda: Percebe-se o receio de fuga de capitais. E não se questiona a legalidade da coisa, nem o despesismo do Estado. Mas é impossível não sublinhar o enorme problema de legitimidade que estas diferenças de tratamento entre rendimentos de capital/rendimentos do trabalho e empresas/famílias levantam numa altura em que se atira para cima das pessoas uma subida retroactiva no IRS, um aumento do IVA, cortes nos salários, cortes nas comparticipações dos medicamentos, no abono de família e por aí adiante. É um veneno que corrói as democracias e dá gás ao populismo fácil de uma certa esquerda. Que uma certa direita não veja isto é confrangedor.
Há meses que o debate em Portugal está concentrado no medo de uma humilhante ajuda financeira externa - uma ironia, visto que Portugal já está a receber ajuda externa. O dinheiro não entra pela porta da frente, nem cheira a declaração oficial de falência, como seria o caso se a sua origem fosse a União Europeia e o FMI. Não. A ajuda vem antes da porta dos fundos de uma instituição europeia e entra pela porta dos fundos em Portugal. É o Banco Central Europeu (BCE) que tem comprado tempo a Portugal - e que permite ao primeiro-ministro continuar a dizer que "somos capazes de resolver os nossos problemas". O objectivo do BCE não é, contudo, salvar a face do país ou proteger a incompetência política portuguesa: Portugal é a próxima peça a cair num dominó que ameaça o euro. Conseguirá então o banco central comprar tempo para Portugal poder mostrar uma boa execução orçamental no próximo ano e sair da linha de fogo? O cenário não é encorajador - o risco de um resgate está ainda bem vivo.
02 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
Ao contrário dos meus estimadosguarda-freios tenho pena que Portugal não consiga (à boleia da Espanha) conquistar a organização do Mundial de 2018. Primeiro, porque o dinheiro que haveria a gastar já foi enterrado nas infraestruturas para o Euro2004 - o investimento público seria muito pequeno (mais pequeno do que a receita pontual de turismo nesse ano). Depois, porque os serviços e o turismo são, de facto, uma das saídas para o país - e o Mundial traz mais gente (e de latitudes mais variadas) do que o Euro, gente que por sua vez poderia trazer mais gente. Enfim, como esperado vai para a Rússia em 2018 e para o Qatar em 2022 - prova de que, como dizia o outro, "o mundo mudou".
Toda a intervenção militar no Rio de Janeiro é fogo de vista que não resolverá grande coisa. Pelo que tenho ouvido, os media brasileiros não andam a contar a história toda, um nevoeiro de negociatas entre poder político e traficantes. Mas o problema maior não é esse. O problema é que enquanto houver consumo haverá sempre traficantes: seja na favela do Alemão ou do Cristo Rei, no Casal Ventoso ou no Intendente. Podemos empurrá-los de um lado para o outro, mas não acabaremos com o negócio. O que leva às perguntas: como acabar com o negócio ou reduzir a violência associada? Legalizando-o. Não é bonito, mas pode funcionar melhor do que a habitual negação da realidade, que serve para encher os bolsos de traficantes, de políticos e polícias corruptos e de vendedores de armamento.
Limpo ou sujo, o dinheiro dos russos salvou-nos. Organizar um Mundial de Futebol neste momento seria uma irresponsabilidade, como foi o Euro 2004. Neste caso, Portugal é um bom perdedor. A FIFA percebeu que não se pode reduzir salários a funcionários públicos e organizar jogos de bola ao mesmo tempo. O campeonato de Portugal e de Espanha nos próximos anos é mais fugir à frente do FMI.
01 dezembro 2010
:: Guarda-freio: Ana Catarina Santos
Rui Pereira chegou pontualmente às 9 e meia, ainda com o cabelo molhado e olhos de sono. A Secretária de Estado da Modernização Administrativa já o esperava, ao frio, bem como o Presidente da Câmara de Oeiras. Isaltino fazia as honras da casa e recebeu-o, sorridente. Rui Pereira é munícipe de Oeiras há muitos anos, na freguesia de Linda-a-Velha. O Ministro foi ontem visitar as instalações da Polícia Municipal de Oeiras e lançar a campanha SMS Reboque no concelho de Oeiras. Durante a visita às instalações, Isaltino quis mostrar ao Ministro as pilhas de multas que a Polícia Municipal tinha passado este ano. Os armários estavam fechados, mas o autarca pediu que abrissem um qualquer. - “O de Queijas?” – perguntou o comandante da polícia. - “Pode ser”, respondeu Isaltino. “Ou prefere que abra o de Linda-a-Velha, Sr. Ministro?” - “Não, não, é melhor não… Abra lá o que Queijas” – disse Rui Pereira, sorrindo. - “Porquê? Ó Senhor Ministro, não me diga que tem aqui alguma multazinha… Hã?” - “Não, não. Quero dizer, que eu saiba não!” (riem-se todos) - “A si nunca lhe rebocaram o carro?”, quis saber Isaltino. - “A mim, nunca!” – respondeu, peremptório, o Ministro da Administração Interna. - “Olhe, a mim já me aconteceu. E garanto-lhe que é muito desagradável…” - “Pois, deve ser uma chatice” – desabafou, solidário, Rui Pereira. - “Nem queira saber! Uma carga de trabalhos!”. E Isaltino Morais remata a conversa: “Não lhe aconteceu, mas podia ter acontecido. É que acontece a qualquer um. Isto, de ter a polícia à perna é uma chatice…”
Guarda-freios: João Cândido da Silva Vítor Matos Bruno Faria Lopes Luís Miguel Afonso Pedro Esteves Adriano Nobre Filipe Santos Costa Ana Catarina Santos