Tirar o santo do andor
Chega-se quase ao fim e ali estão, condensadas em poucos parágrafos, as fraquezas e virtudes de “Sá Carneiro”. Na pág. 606, Miguel Pinheiro (M.P.) relata o último almoço de Francisco Sá Carneiro (F.S.C.), horas antes de morrer. O estilo é o de todo o livro: escorreito, incisivo, impressivo, com pormenores q.b. e diálogos em discurso direto. A história é assim, foi isto que aconteceu — é isso que o autor nos diz.
O último almoço do fundador do PSD foi no Tavares Rico e, para além dele, estavam à mesa o candidato presidencial da direita, Soares Carneiro, e parte do estado-maior da AD: Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, António Capucho, Cunha Rego, Luís Beiroco e Patrício Gouveia. Faltam três dias para as presidenciais e F.S.C. dá tudo por tudo pelo seu candidato, de cuja vitória fazia depender a continuidade como primeiro-ministro (cargo para que fora reeleito dois meses antes). M.P. relata um espantoso diálogo entre F.S.C. e o vice-primeiro-ministro (e líder do CDS), Freitas do Amaral. O presidente do PSD antevê a derrota do seu candidato presidencial (era previsível), reafirma que nesse caso ele e Freitas se demitem (já o tinham anunciado) e continua: “Alguém do meu partido vai aceitar ser primeiro-ministro com o Eanes. Nessa altura, eu abandonarei o PSD e ficarei uns tempos fora da política, a deixá-los espetarem-se.” E vai mais longe: “Não dou mais de seis meses a um ano a esse governo. O Eanes e o Conselho da Revolução não o deixarão governar. Quando isso se tornar patente, fundarei um novo partido, e estou certo de que as bases do PSD virão comigo. E você, Diogo? Aceitaria fazer parte comigo desse novo partido?” Freitas responde: “É claro que sim, Francisco, não hesitava um minuto.”
Num momento crucial da sua carreira política, F.S.C. admitia a derrota do seu candidato presidencial (à frente do próprio!) e anunciava a implosão do seu governo, da sua maioria e do seu PSD, desafiando o parceiro de coligação a ajudar — e isto perante altos dirigentes desses partidos. O problema é que esta fascinante conversa, transcrita entre uma perdiz e um charuto, provavelmente não aconteceu.
Não é a primeira vez que este episódio é relatado nestes termos, que são quase decalcados das memórias de Freitas do Amaral. Mas todos sabemos como a memória trai, sobretudo em causa própria — e já anteriormente as memórias de Freitas foram desmentidas por quem viveu os mesmos acontecimentos (a recente biografia de Amaro da Costa deixa a nu outro episódio em que Freitas tentou engrandecer o seu papel, sendo nesse caso desmentido por Veiga Simão).
O que seria apenas um problema de Freitas passa a ser um problema de M.P.: uma biografia que se apresenta com este fôlego não pode dar como matéria de facto o que não é senão uma versão da História. Bastava ao autor ter feito fact checking básico: podia, por exemplo, perguntar a António Capucho, que também esteve nesse almoço, se aquele diálogo existiu. O antigo secretário-geral do PSD diria o mesmo que nos disse: “Esse relato é totalmente desconchavado. Esse diálogo nunca aconteceu à mesa daquele almoço.” Sendo assim, talvez fosse prudente apresentar as duas versões. Só que isso estragava o ritmo da narrativa e a omnisciência do autor, que só uma vez admite existirem versões contraditórias sobre um acontecimento (pág. 582). M.P. passa ao lado da incerteza e do contraditório e opta pela versão que melhor encaixa na sua história.
Fica a dúvida: quantas vezes o autor fez o mesmo ao longo do livro?
A questão não é se Sá Carneiro pensava aquilo que o autor põe na sua boca. Tudo indica que sim — mas não o terá dito assim, ali. Sintetizar o pensamento de uma personagem num momento simbólico é um recurso comum na literatura e nos seriados televisivos “inspirados em factos reais”. Mas não se recomenda numa biografia que quer ser factual.
Desde as primeiras páginas que M.P. cai nesta tentação de romancear: não admite dúvidas, não poupa nas descrições de estados de alma, não hesita em polvilhar as páginas com diálogos em discurso direto, até entre o bisavô e o avô de Sá Carneiro (pág. 20), em 1861 (!). É uma opção deliberada. Nem é original e facilita a leitura — de facto, o livro lê-se de uma penada —, mas deixa a desejar em rigor.
É pena, pois esta biografia tinha tudo para ser uma das melhores empreitadas do género em Portugal. Há um notável trabalho de pesquisa, recorrendo a inúmeras entrevistas, bibliografia, jornais, registos sonoros de reuniões do PSD, arquivos online e arquivos pessoais nunca antes disponibilizados — nomeadamente o precioso e raro contributo de Isabel Sá Carneiro, que faz o perfeito contraponto entre o homem e o político. Esse material é a base para uma narrativa habilidosa e exaustiva. Por vezes, dá a sensação de que não ficou nada por contar.
M.P. constrói um relato detalhado e épico do percurso de Sá Carneiro, com grandezas e misérias e um manancial de episódios — e consegue entretecê-los sem nunca se desfocar do fio da narrativa. E, mais importante, sem embarcar na mitologia que se construiu em torno de Sá Carneiro. O autor tira-o do andor onde o PSD e o país político o colocaram no dia do seu funeral. Mostra-nos o homem frágil e instável, o combatente inflexível, o político imprevisível, o governante maniqueísta, o estadista visionário, o dirigente autoritário. A história é tão boa que não precisava de ser romanceada.
Crítica publicada no suplemento Atual do Expresso, 19-12-10
O último almoço do fundador do PSD foi no Tavares Rico e, para além dele, estavam à mesa o candidato presidencial da direita, Soares Carneiro, e parte do estado-maior da AD: Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, António Capucho, Cunha Rego, Luís Beiroco e Patrício Gouveia. Faltam três dias para as presidenciais e F.S.C. dá tudo por tudo pelo seu candidato, de cuja vitória fazia depender a continuidade como primeiro-ministro (cargo para que fora reeleito dois meses antes). M.P. relata um espantoso diálogo entre F.S.C. e o vice-primeiro-ministro (e líder do CDS), Freitas do Amaral. O presidente do PSD antevê a derrota do seu candidato presidencial (era previsível), reafirma que nesse caso ele e Freitas se demitem (já o tinham anunciado) e continua: “Alguém do meu partido vai aceitar ser primeiro-ministro com o Eanes. Nessa altura, eu abandonarei o PSD e ficarei uns tempos fora da política, a deixá-los espetarem-se.” E vai mais longe: “Não dou mais de seis meses a um ano a esse governo. O Eanes e o Conselho da Revolução não o deixarão governar. Quando isso se tornar patente, fundarei um novo partido, e estou certo de que as bases do PSD virão comigo. E você, Diogo? Aceitaria fazer parte comigo desse novo partido?” Freitas responde: “É claro que sim, Francisco, não hesitava um minuto.”
Num momento crucial da sua carreira política, F.S.C. admitia a derrota do seu candidato presidencial (à frente do próprio!) e anunciava a implosão do seu governo, da sua maioria e do seu PSD, desafiando o parceiro de coligação a ajudar — e isto perante altos dirigentes desses partidos. O problema é que esta fascinante conversa, transcrita entre uma perdiz e um charuto, provavelmente não aconteceu.
Não é a primeira vez que este episódio é relatado nestes termos, que são quase decalcados das memórias de Freitas do Amaral. Mas todos sabemos como a memória trai, sobretudo em causa própria — e já anteriormente as memórias de Freitas foram desmentidas por quem viveu os mesmos acontecimentos (a recente biografia de Amaro da Costa deixa a nu outro episódio em que Freitas tentou engrandecer o seu papel, sendo nesse caso desmentido por Veiga Simão).
O que seria apenas um problema de Freitas passa a ser um problema de M.P.: uma biografia que se apresenta com este fôlego não pode dar como matéria de facto o que não é senão uma versão da História. Bastava ao autor ter feito fact checking básico: podia, por exemplo, perguntar a António Capucho, que também esteve nesse almoço, se aquele diálogo existiu. O antigo secretário-geral do PSD diria o mesmo que nos disse: “Esse relato é totalmente desconchavado. Esse diálogo nunca aconteceu à mesa daquele almoço.” Sendo assim, talvez fosse prudente apresentar as duas versões. Só que isso estragava o ritmo da narrativa e a omnisciência do autor, que só uma vez admite existirem versões contraditórias sobre um acontecimento (pág. 582). M.P. passa ao lado da incerteza e do contraditório e opta pela versão que melhor encaixa na sua história.
Fica a dúvida: quantas vezes o autor fez o mesmo ao longo do livro?
A questão não é se Sá Carneiro pensava aquilo que o autor põe na sua boca. Tudo indica que sim — mas não o terá dito assim, ali. Sintetizar o pensamento de uma personagem num momento simbólico é um recurso comum na literatura e nos seriados televisivos “inspirados em factos reais”. Mas não se recomenda numa biografia que quer ser factual.
Desde as primeiras páginas que M.P. cai nesta tentação de romancear: não admite dúvidas, não poupa nas descrições de estados de alma, não hesita em polvilhar as páginas com diálogos em discurso direto, até entre o bisavô e o avô de Sá Carneiro (pág. 20), em 1861 (!). É uma opção deliberada. Nem é original e facilita a leitura — de facto, o livro lê-se de uma penada —, mas deixa a desejar em rigor.
É pena, pois esta biografia tinha tudo para ser uma das melhores empreitadas do género em Portugal. Há um notável trabalho de pesquisa, recorrendo a inúmeras entrevistas, bibliografia, jornais, registos sonoros de reuniões do PSD, arquivos online e arquivos pessoais nunca antes disponibilizados — nomeadamente o precioso e raro contributo de Isabel Sá Carneiro, que faz o perfeito contraponto entre o homem e o político. Esse material é a base para uma narrativa habilidosa e exaustiva. Por vezes, dá a sensação de que não ficou nada por contar.
M.P. constrói um relato detalhado e épico do percurso de Sá Carneiro, com grandezas e misérias e um manancial de episódios — e consegue entretecê-los sem nunca se desfocar do fio da narrativa. E, mais importante, sem embarcar na mitologia que se construiu em torno de Sá Carneiro. O autor tira-o do andor onde o PSD e o país político o colocaram no dia do seu funeral. Mostra-nos o homem frágil e instável, o combatente inflexível, o político imprevisível, o governante maniqueísta, o estadista visionário, o dirigente autoritário. A história é tão boa que não precisava de ser romanceada.
Crítica publicada no suplemento Atual do Expresso, 19-12-10
Etiquetas: biografia, livros, Sá Carneiro