Todas as gerações precisam de um hino - e a geração mais qualificada e entalada de Portugal arranjou um: "Parva que sou", dos Deolinda. Para quem (como eu) não foi aos concertos vale a pena ver na internet: cada linha irónica da vocalista Ana Bacalhau é abafada por palmas e gritos. No final, toda a plateia dominada por jovens, em Lisboa e no Porto, levanta-se num estrondoso aplauso. Os Deolinda tinham acabado de tocar num nervo.
A música alastrou pela internet como fogo num palheiro. As reacções dos "jovens" são de exaltação com o facto de alguém finalmente conseguir articular numa canção tudo o que lhes acontece na vida: os contratos de trabalho miseráveis ("Porque isto está mal e vai continuar/Já é uma sorte eu poder estagiar"), o contraste entre expectativas e realidade ("Que mundo tão parvo/Onde para ser escravo é preciso estudar") e a anestesia mimada ("Sou da geração ''casinha dos pais''/Se já tenho tudo, p''ra quê querer mais?"). Está lá quase tudo. Os Deolinda cantam sobre problemas reais de mais de um milhão de jovens com menos de 34 anos, entre trabalhadores a prazo, desempregados e inactivos.
Mas também os mais velhos ouvem e, na internet, logo surgiram as reacções típicas. À esquerda, entre elogios ao "grito da geração adiada" e apelos à revolta dos jovens, o cronista Daniel Oliveira escreveu na edição online do "Expresso": "A tese continuará a ser a mesma: a desgraça desta geração resulta dos "privilégios" dos mais velhos [...] Convenientemente, a desgraça da geração 500 euros é haver quem ainda não tenha as suas vidas a prazo." Já José Manuel Fernandes (ex-director do "Público") pediu no blogue Blasfémias um levantamento geral ("Levantem-se oh vítimas"), mas em sentido contrário ("dos direitos adquiridos!"). E explica, numa posição clássica da direita: "A nova canção dos Deolinda pode tornar-se no hino das gerações excluídas pelo Portugal dos ''direitos adquiridos'' e ''empregos para a vida'' [...] dos que se limitam a estar sentados sobre os seus empregos." Ambos os lados ignoram aspectos importantes.
A esquerda olha para o problema sempre do ângulo da igualdade/desigualdade e esquece-se do outro: os mais velhos, clientela política, pesam mais nas decisões de qualquer governo do que os jovens que, além de serem cada vez menos, fazem questão de se abster nas eleições. É por isto - e porque os eleitores são melhores pais do que eleitores - que existe um problema de justiça intergeracional: uma lei laboral que protege de tal forma o emprego individual permanente que contribui para que a flexibilização selvagem seja feita sobre quem entra no mercado; uma lógica de protecção social feita para o mercado de trabalho de há 30 anos e ignora os jovens precários; um Estado social que, com pezinhos de lã, se prepara para despejar a factura das pensões de reforma nestes mesmos jovens. A lista é longa.
A direita reconhece o fosso geracional - pelo menos enquanto está fora do governo - mas erra ao copiar cegamente dos manuais de economia e de gestão o ideal de flexibilidade total. Os bloqueios geracionais agravam a situação dos jovens, mas há mais além disso. Há um capitalismo eticamente pobre e pouco fiscalizado. Há uma filosofia crescente centrada no trabalho temporário, que agrava o fosso salarial entre o topo e a base. Há um paradigma de "reengenharia" permanente, que impõe às pessoas uma vontade contínua de mudança, com impacto forte no seu tempo e na sua narrativa de vida - é um choque que os jovens, mesmo com bons empregos, bem conhecem. A direita parece ignorar tudo isto.
Mas há um ponto em que ambos os lados erram em simultâneo: a educação e as expectativas. Nos anos 90, pais que nunca tiveram oportunidades sonharam ter filhos doutores e os governos fizeram a vontade: milhares pagaram em tempo e dinheiro cursos sem empregabilidade, numa lógica de ensino baseada na auto--estima. Pagaram para, no final, acabarem semi-escravizados por um mercado de trabalho sem ética, orientado para os interesses da maioria estabelecida. Falar de "jovens" significa abarcar tudo isto: e é mais simples fazê-lo a cantar do que no debate político.
Era uma vez um ministro de um governo sem maioria que decidiu afrontar os dois partidos que podiam salvar esse governo em caso de uma moção de censura da direita.
Se o ministro Lacão quisesse mesmo "a recuperação da confiança por parte dos cidadãos eleitores", como diz, não se metia pela conversa da redução do número de deputados. Até porque só na cabeça dele é que uma coisa tem que ver com a outra.
Se fosse mesmo isso a estar em causa, haveria outros caminhos, bastante mais eficazes: - Não prometer uma coisa em campanha e fazer o contrário depois das eleições - Não prometer em campanha aquilo que sabem não poder cumprir - Não dificultar o exercício do direito de voto - Não tomar medidas eleitoralistas com efeitos ruinosos - Não delapidar os recursos públicos com investimentos dispensáveis - Não permitir que os partidos políticos sejam exemplos acabados de corrupção, compadrio, tráfico de influências e dinheiro sujo - Não presumir que o exercício de um cargo político coloque o seu detentor acima do escrutínio público - Não tratar as pessoas como estúpidas
A lista podia continuar, e até me podia dar ao trabalho de, em cada item, fazer uma dúzia de links.
Parece que poupar uns cobres não é a única razão desta intempestiva proposta. É certo que surge embrulhada na narrativa da "crise" e da necessidade de "austeridade". Mas, pelos vistos, tem em vista sobretudo o Santo Graal das democracias modernas: combater o "divórcio", como se diz agora, entre eleitos e eleitores.
Confesso que me escapa esse passe de magia que pela redução do número de deputados consegue "aproximar os eleitos dos eleitores". Em todo o caso, não tenho nenhum fetiche com o número 230, nem qualquer repulsa pelo 180. No entanto...
O ministro Lacão coloca uma série de perguntas e eu embatuco logo nas duas primeiras: não sei se uma diminuição do número de deputados para 180 "manteria uma representatividade adequada" e a "proporcionalidade actual". O senso comum diz que, se há menos representantes, a representatividade é afectada. Mas para além desta lapalissada, não tenho dados que me permitam responder.
A boa notícia é que, se avançar a proposta feita pelo ministro a título pessoal (curioso número...), arranjam-se estudos "credíveis" e "sérios", de entidades "acima de qualquer suspeita", garantindo uma coisa ou jurando o seu contrário. É como os pareceres jurídicos - há para todos os gostos -, com a vantagem de que os números, como se sabe, são fracos: basta torturá-los e eles dizem o que quisermos.
P.S.: Em todo o caso, não deixa de ser comovente ler o ministro Lacão discorrer sobre a "agressividade retórica típica do Estado-espectáculo que vai progressivamente tomando conta do quotidiano da vida política".
Os cavaquistas mais empedernidos devem estar aborrecidos por se fazer jornalismo em Portugal, como mais uma vez prova o José António Cerejo, no Público. O silêncio é de ouro, deve continuar a pensar o professor Cavaco, arrependido de ter feito o comunicado de ontem, uma vez que as declarações têm destas coisas, uma coisa puxa a outra, e podem colidir com a realidade. O trabalho do Público de hoje contraria a teoria do "jornalismo suave" e ainda bem.
Entre a Tunísia e o Egipto está a Líbia, onde mora o mais velho dinossauro político por aquelas paragens, o coronel Muammar Qadaffi. Não se tem ouvido falar muito da Líbia - nem na Argélia... - mas este silêncio pode ter os dias contados. Aviso a São Bento: esta malta líbia pode não aguentar a tempo de financiar a nossa bela República.
- Digame? - Istoi? Rosé Luiz? - Si? - Fala o Rosé, die Lisbioa. Coimio istiás? - Bien, hombre. Qué pasa? - Olhia, estiavia aqui a vier ionde é que niós puediamos cortiare un pouquito miais nas diespiesas. Y niós aqui, viamos cortiari nios inquiéritios del INE. Passiamos a fiazer tiudo por telefione. - A si? Las estatisticas?! - Si, si, fica miutio más barato. Más biaratio, si me entiendies. - Anda, que bien. No me habia ocorrido. - Niós comeciámos con as estiatísticas do desiempriego. Atié dá jeito. Diá jeitio, si me compriendies (risos). - Muy bien, Rosé. Gracias. Seguiré el ejemplo en Los Censos nacionales. - Viés, quien te diá boias ideias, é aqui o "hiermano" piortuguies. Quien é amiguio, quien ié?
02 fevereiro 2011
:: Guarda-freio: Bruno Faria Lopes
Hoje sonhei que o Liedson falava português de Portugal e que o fazia com inatacável correcção. (Mesmo). Mas adiante. O homem está de saída, o que equivale a dizer que um dos poucos craques que o Sporting ainda tinha está de saída. Preço: 2 milhões. Dois. Parece que para o gajo que manda no futebol do Sporting este foi o preço para o clube se ver livre de um "problema". Tendo em conta o passado de "problemas" em Alvalade, tenho uma sugestão: enchamos 100% do plantel de coxos, muito agradecidos por jogar no Sporting, e pode ser que os problemas desapareçam de vez. Tal como o futebol do clube. Não haja paciência.
Na foto, dois dos problemas que o Sporting resolveu com o habitual brilhantismo celebram o segundo golo contra o Benfica, num inesquecível 5-3 em Alvalade para as meias finais da taça, em Abril de 2008. João Moutinho, capitão e problema, é agora o motor do meio campo FC Porto. Liedson, avançado e problema, sai para o Corinthians ao desbarato. Gestão do cacete.
O Presidente não quer segunda volta das eleições presidenciais porque isso sai caro. O ministro quer cortar 50 deputados no Parlamento por causa da austeridade. A democracia é uma flor frágil. E, pelos vistos, muito cara.
João Amaral Tomaz, antigo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, afirma que "tem que ser Portugal a resolver os seus problemas" e que "o recurso a terceiros só se justifica se não formos capazes de nós próprios ultrapassarmos as dificuldades".
Ora bem:
1. Portugal está, há alguns meses, dependente dos financiamentos externos que consiga captar nos mercados ao preço que os credores decidirem ser razoável para compensar o risco que correm;
2. O Banco Central Europeu tem financiado a banca portuguesa, compensando o facto de as instituições financeiras nacionais não conseguirem captar recursos no mercado interbancário;
3. O Governo tem andado em visitas oficiais, sejam de Estado ou em"road shows" junto de potenciais investidores, para conseguir ajuda financeira sob a forma de compra de títulos de dívida pública portuguesa (sabe-se lá com que contrapartidas).
Posto isto, parece existirem duas evidências:
a) Portugal tem que resolver os seus problemas porque andar de chapéu na mão pelo Mundo fora não é solução de vida;
b) Pode não ser óbvio, o que não deixa de surpreender, mas a verdade é que Portugal já está há algum tempo a recorrer a terceiros precisamente porque não foi capaz, até agora, de evitar ou de resolver os seus problemas.
Para quem pensa como João Amaral Tomaz, o problema não está em pedir ajuda a terceiros mas em pedir ajuda a terceiros que ostentem a sigla FMI. Estão no seu direito. Mas, pelo menos, expliquem porquê.
Um concurso lançado pelo presidente do Instituto Português do Sangue foi ganho pelo filho do presidente do Instituto Português do Sangue. Se isto era uma questão de sangue, não se percebe por que motivo o concurso foi anulado. Enfim, se foi por vergonha na cara, compreende-se. Em certas situações, o sangue costuma concentrar-se nas bochechas. Malvado.
Ontem, numa pequena celebração familiar, dei por mim sentado à mesa do reputado Gemelli, em Lisboa. No Gemelli a qualidade do que se serve quase salva a petulância postiça, a falta de atenção e a falta de naturalidade com que se serve - quase.
Na melhor linguagem Zagat: entre entradas e sobremesas de valor (mas não deslumbrantes), acabei por gostar muito do casamento improvável entre baunilha e salmão fumado no prato de massa. E o risotto estava mesmo muito bom. Tudo foi regado com um bom tinto, a preço razoável, recomendado pelo anfitrião. E tudo estaria muito bem se para aproveitar uma boa refeição não precisássemos (aquelas quatro pessoas) de abrir a alma e baixar a guarda - de saber que a comida é boa, que a companhia é boa e que estão a tratar de nós com atenção discreta e eficaz. No Gemelli o anfitrião é um bom anfitrião, mas o resto do serviço é uma lástima: um replicant que escapou às balas do Harrison Ford e acabou ali a recitar pratos que obviamente não conhece, com voz sumida e maquinal, olhos postos num horizonte distante; e o pedante médio, de cara fechada e insuportavelmente condescendente, nada atento aos desejos dos clientes que lhe pagam o salário. Em resumo: no Gemelli come-se muito bem, a preços altos (45 euros por pessoa foi o resultado da experiência), num ambiente gélido (para o qual também contribui a decoração estilo contemporâneo-impessoal). Cada vez tenho menos paciência para estas merdas. A não repetir.
Guarda-freios: João Cândido da Silva Vítor Matos Bruno Faria Lopes Luís Miguel Afonso Pedro Esteves Adriano Nobre Filipe Santos Costa Ana Catarina Santos