Mistérios da vida moderna - Kafka com gripe A
Tenho a gripe. Deve ser A. O meu filho teve porque os meninos da sala dele tinham. Sou doente crónico. E tomo remédios para a doença crónica. Sou grupo de risco. Com o filho doente, tomei Tamiflu, dose profilática. Quando parei a mezinha adoeci após dois dias. Mandei um SMS ao meu médico. Não respondeu. Fui ao hospital. Ao atendimento da Gripe A, no S. Francisco Xavier. Havia pouca gente à espera. Achei-me com sorte. Cheguei antes das 11h30 da manhã. Só saí de lá às 20h30 da noite, nove horas depois. Os companheiros de infortúnio usavam máscara. Viam-se-lhes olhos febris. Tossiam. Cuspiam pulmões. Senhoras de meia idade irritadas praguejavam como marinheiros. Comi um croissant ressequido de uma máquina e foi só. Estavam duas médicas jovens de serviço. A que me atendeu viu na minha doença crónica um mistério. Esperei duas horas para ser atendido. Mais uma para fazer análises e raio X. Mais três para saber o resultados das análises. Mais uma para voltar ao consultório, onde os doentes eram atendidos aos dois de cada vez, separados por um biombo de pano rosa. Receitaram-me mais Tamiflu. Dose milagrosa, dose terapêutica, o dobro da dose anterior. Prometeram-me mais meia hora. Para o remédio chegar da farmácia hospitalar à urgência demorou hora e meia. Hora e meia de desespero de quem espera doente há sete horas. Chovia a cântaros. Fiz o teste da gripe A. Se o teste for positivo ainda me telefonam a dizer. Se for negativo não dizem nada. E não sabem quanto tempo demora a comunicar o resultado. Mesmo assim, faço os sete dias de quarentena. Se não tiver nada fico os sete dias da quarentena em casa à espera de um telefonema. A jovem médica também não passa baixas médicas. Isso é com o médico de família do centro de saúde. Como sou um privilegiado, não tenho médico de família. Tenho médico particular. Portanto, não vou interromper a minha quarentena para ir ao centro de saúde pedir um atestado a um médico que não conheço para uma doença que não sei se tenho. E talvez nem venha a saber. Nada nesta história bate certo. Só um ser cruel podia inventar um sistema destes para nos atormentar na doença.
O hospital trata-nos da saúde, mas alguém nos trata do hospital?