Entre a humilhação e o alívio, agradeçamos a Bruxelas
As intervenções de Cavaco e Alegre sobre a fiscalização europeia prévia do Orçamento mostram como o país político ainda não percebeu o que significou a entrada no euro
Nada exemplifica melhor a inconsciência do poder político português em relação à situação económica do país que o pseudodebate sobre a maior fiscalização da Comissão Europeia e do Ecofin sobre o Orçamento do Estado. Entre esquerda e direita o panorama é vasto e por isso vale a pena procurar intervenções simbólicas: nas palavras do Presidente da República, Cavaco Silva, e do seu desafiador principal, o socialista Manuel Alegre, temos bons exemplos de como o país não tem ainda a noção do que representou a sua entrada na zona euro.
Para Alegre, o facto de Portugal submeter a sua estratégia orçamental à avaliação externa "não agrada", porque se trata de "uma competência específica e exclusiva da Assembleia da República". Há, depreende-se, uma inaceitável perda de soberania, que, com o candidato-poeta em Belém, supostamente não passaria. Esta não é a posição do partido de Alegre, o PS, mas é a do seu candidato e de toda a esquerda parlamentar. Pena que esta linha de argumentação ignore que a partilha de uma moeda representa, por si só, uma partilha de soberania - algo que ficou evidente na crise grega, que ameaçou a estabilidade financeira de Portugal e de toda a zona euro, mas já tinha ficado patente muito antes, quando prescindimos do poder de cunhar moeda e de dominar as taxas de juro. Não ouvimos Alegre, nem quem defende posições semelhantes, protestar contra a descida drástica das taxas de juro trazida pelo euro, que permitiu que sucessivos governos (sobretudo do seu partido) se endividassem na década passada para expandir o Estado social e o clientelismo político. Mas agora que a factura do contrato do euro aparece - engordada pela irresponsabilidade gastadora de vários governos e pela incapacidade do Parlamento -, Alegre e a esquerda esquivam-se. Ficamos elucidados.
E o que responde Cavaco e boa parte da direita parlamentar? Para o Presidente da República, as novas medidas de fiscalização já estavam previstas nos tratados. Está tudo como antes. O "semestre europeu" é só um "nome pomposo" para fazer aquilo que Ecofin e Comissão já podiam fazer ao abrigo dos tratados - a diferença é de calendário. Pena que o Presidente não tenha acrescentado que esta fiscalização implicará níveis diferentes de intromissão na vida de cada país. A regra é simples: quanto mais infractor e preocupante o país, maior a interferência. Por isso não será apenas uma discussão a priori sobre os grandes números e a tendência das contas - isso é para os cumpridores, como a Alemanha e a Holanda. Como se viu pelos humilhantes recados que o partido de Angela Merkel mandou a Lisboa esta semana, os planos de Portugal, Grécia e Espanha serão fiscalizados com alguma profundidade - e podem surgir "recomendações de política" a um nível mais detalhado, difíceis de evitar. A perda de soberania será maior do que Cavaco e muitos economistas e líderes políticos do centro-direita estão dispostos a admitir, o que é lamentável (porque mascara a situação real do país), mas compreensível - estes foram os homens que conseguiram pôr Portugal no euro, mas que depois não o souberam orientar.
Entre estes dois pólos - que convidam os portugueses a fazer aquilo em que são especialistas, assobiar para o lado - vai a política do país vivendo. Lá fora, os investidores gostam porque recebem juros mais altos e a Europa olha com condescendência. Terá de dar uma lição ou outra de política orçamental. Entre a humilhação e o alívio, nós, contribuintes, agradecemos.
Crónica publicada no i
Nada exemplifica melhor a inconsciência do poder político português em relação à situação económica do país que o pseudodebate sobre a maior fiscalização da Comissão Europeia e do Ecofin sobre o Orçamento do Estado. Entre esquerda e direita o panorama é vasto e por isso vale a pena procurar intervenções simbólicas: nas palavras do Presidente da República, Cavaco Silva, e do seu desafiador principal, o socialista Manuel Alegre, temos bons exemplos de como o país não tem ainda a noção do que representou a sua entrada na zona euro.
Para Alegre, o facto de Portugal submeter a sua estratégia orçamental à avaliação externa "não agrada", porque se trata de "uma competência específica e exclusiva da Assembleia da República". Há, depreende-se, uma inaceitável perda de soberania, que, com o candidato-poeta em Belém, supostamente não passaria. Esta não é a posição do partido de Alegre, o PS, mas é a do seu candidato e de toda a esquerda parlamentar. Pena que esta linha de argumentação ignore que a partilha de uma moeda representa, por si só, uma partilha de soberania - algo que ficou evidente na crise grega, que ameaçou a estabilidade financeira de Portugal e de toda a zona euro, mas já tinha ficado patente muito antes, quando prescindimos do poder de cunhar moeda e de dominar as taxas de juro. Não ouvimos Alegre, nem quem defende posições semelhantes, protestar contra a descida drástica das taxas de juro trazida pelo euro, que permitiu que sucessivos governos (sobretudo do seu partido) se endividassem na década passada para expandir o Estado social e o clientelismo político. Mas agora que a factura do contrato do euro aparece - engordada pela irresponsabilidade gastadora de vários governos e pela incapacidade do Parlamento -, Alegre e a esquerda esquivam-se. Ficamos elucidados.
E o que responde Cavaco e boa parte da direita parlamentar? Para o Presidente da República, as novas medidas de fiscalização já estavam previstas nos tratados. Está tudo como antes. O "semestre europeu" é só um "nome pomposo" para fazer aquilo que Ecofin e Comissão já podiam fazer ao abrigo dos tratados - a diferença é de calendário. Pena que o Presidente não tenha acrescentado que esta fiscalização implicará níveis diferentes de intromissão na vida de cada país. A regra é simples: quanto mais infractor e preocupante o país, maior a interferência. Por isso não será apenas uma discussão a priori sobre os grandes números e a tendência das contas - isso é para os cumpridores, como a Alemanha e a Holanda. Como se viu pelos humilhantes recados que o partido de Angela Merkel mandou a Lisboa esta semana, os planos de Portugal, Grécia e Espanha serão fiscalizados com alguma profundidade - e podem surgir "recomendações de política" a um nível mais detalhado, difíceis de evitar. A perda de soberania será maior do que Cavaco e muitos economistas e líderes políticos do centro-direita estão dispostos a admitir, o que é lamentável (porque mascara a situação real do país), mas compreensível - estes foram os homens que conseguiram pôr Portugal no euro, mas que depois não o souberam orientar.
Entre estes dois pólos - que convidam os portugueses a fazer aquilo em que são especialistas, assobiar para o lado - vai a política do país vivendo. Lá fora, os investidores gostam porque recebem juros mais altos e a Europa olha com condescendência. Terá de dar uma lição ou outra de política orçamental. Entre a humilhação e o alívio, nós, contribuintes, agradecemos.
Crónica publicada no i