Pontos, contrapontos e reticências
Pacheco Pereira tem um programa na SIC Notícias que lhe permite atirar para níveis estratosféricos o conceito de "watchdog" dos media portugueses. Durante quinze ou vinte minutos, na solidão do estúdio, ele, a câmara e os seus critérios: fala, analisa, critica, discorre, ironiza, explica, ensina, contesta. Esporadicamente oferece-nos também o privilégio do elogio. Esporadicamente.
Não o vejo sempre. Não o vejo sequer regularmente. Perdi o entusiasmo com o formato quando, ao terceiro ou quarto programa, percebi que uma ideia teoricamente interessante (discutir e analisar os media), facilmente resvalaria para um registo analítico intelectualmente enviesado. Na dezena (ou talvez menos) de programas que vi até agora, identifiquei a abundância de alguns pecados: generaliza os casos particulares com demasiada frequência, deturpa alguns dos trabalhos analisados e, pior, chega a incorrer num erro que tanto critica aos jornalistas - faz mal o trabalho de casa e a crítica que exerce não está assim tão bem fundamentada quanto a convicção do seu verbo deixa transparecer.
Eu sei que aquilo é um programa de opinião. Mais: como Pacheco Pereira explicou no arranque das emissões, eu sei que é um programa de opinião apenas centrado naquilo que Pacheco Pereira vê, ouve e lê. Aceito a premissa. É opinião, ponto. A única coisa que me provoca alguma urticária é quererem vender-me este formato como sendo feito por alguém livre, isento, com crítica fundamentada ou equidistante. Uma espécie de Provedor Global dos Media. Ao jeito dos provedores que o "Público", o "DN" ou a "RTP" têm. A grande diferença é que, ao contrário de Pacheco Pereira, esses provedores percebem a profissão. Porque a praticaram e/ou estudaram a fundo. E em 99% dos casos, a crítica desses provedores é pertinente e útil para quem exerce jornalismo: apontam os erros, ajudam-nos evoluir, permitem-nos reflectir sobre o jornalismo que exercemos.
No programa de Pacheco Pereira há um claro défice destes atributos. O tom chega a ser sobranceiro, pontualmente acintoso, frequentemente paternalista. Muitas vezes tem razão no que diz e critica. Mas noutras tantas deixa perceber que a pessoa que se apresenta ali como um consumidor compulsivo de media apenas tresleu as peças ou jornais que depois destrói para quem o queira ouvir. Pior do que isso é a manifesta dificuldade que o Pacheco Pereira deputado do PSD tem em despir a pele de ilustre figura do universo social-democrata. É inevitável: por vezes a "agenda" salta do bolso. Nomeadamente quando se trata de analisar trabalhos jornalísticos que de alguma forma se relacionem com a esfera governamental: sim, esqueçam a análise imparcial quando se trata de colocar o foco numa peça que seja favorável a Sócrates. Recordo um episódio que roçou mesmo a caricatura, numa profunda análise semiótica a uma imagem do primeiro-ministro, em que quase vislumbrei um assomo da palavra "Verdade", acompanhada pelo logo do PSD, no púlpito que lhe serve de guarida em Carnaxide. Quanto a isenção, fiquei esclarecido.
Aqui chegados, e já que falo do Pacheco Pereira deputado, não posso deixar de considerar curioso que, no programa de hoje, um dos exemplo de "mau trabalho" tenha sido arquivado pelo Pacheco Pereira analista de media com o carimbo de "demagógico". Era um artigo do "DN" sobre as faltas dos deputados. "Demagogia", clamou Pacheco. Não porque fosse mentiroso, não porque não fosse factual, não porque enganasse os leitores: era "demagogia" porque o artigo colocava apenas numa caixa aquilo que Pacheco Pereira entendia ser o dado mais relevante (que, embora faltassem, os deputados estavam a faltar menos).
Demagogia, disse ele.
Eu, que tive o prazer de acompanhar grande parte das sessões da comissão de inquérito ao negócio PT/TVI, estranhei a ligeireza no uso de tal expressão. Levantei-me, fui ao dicionário da Porto Editora para ver se estava enganado, procurei, li e confirmei:
"demagogia"
nome feminino
1. submissão excessiva da actuação política ao agrado das massas populares;
2. processos servis de captar o favor popular;
3. abuso da democracia
(Do gr. demagogia, «direcção do povo»)
"Equivocou-se", pensei. Depois mudei de canal.
PS: No meio de tudo isto o que me provoca realmente alguma tristeza é o facto de já não termos um programa dedicado à análise, debate e crítica do jornalismo. Havia um na RTP2. Pelos vistos acabou. E este é outra coisa. Para pior.
Não o vejo sempre. Não o vejo sequer regularmente. Perdi o entusiasmo com o formato quando, ao terceiro ou quarto programa, percebi que uma ideia teoricamente interessante (discutir e analisar os media), facilmente resvalaria para um registo analítico intelectualmente enviesado. Na dezena (ou talvez menos) de programas que vi até agora, identifiquei a abundância de alguns pecados: generaliza os casos particulares com demasiada frequência, deturpa alguns dos trabalhos analisados e, pior, chega a incorrer num erro que tanto critica aos jornalistas - faz mal o trabalho de casa e a crítica que exerce não está assim tão bem fundamentada quanto a convicção do seu verbo deixa transparecer.
Eu sei que aquilo é um programa de opinião. Mais: como Pacheco Pereira explicou no arranque das emissões, eu sei que é um programa de opinião apenas centrado naquilo que Pacheco Pereira vê, ouve e lê. Aceito a premissa. É opinião, ponto. A única coisa que me provoca alguma urticária é quererem vender-me este formato como sendo feito por alguém livre, isento, com crítica fundamentada ou equidistante. Uma espécie de Provedor Global dos Media. Ao jeito dos provedores que o "Público", o "DN" ou a "RTP" têm. A grande diferença é que, ao contrário de Pacheco Pereira, esses provedores percebem a profissão. Porque a praticaram e/ou estudaram a fundo. E em 99% dos casos, a crítica desses provedores é pertinente e útil para quem exerce jornalismo: apontam os erros, ajudam-nos evoluir, permitem-nos reflectir sobre o jornalismo que exercemos.
No programa de Pacheco Pereira há um claro défice destes atributos. O tom chega a ser sobranceiro, pontualmente acintoso, frequentemente paternalista. Muitas vezes tem razão no que diz e critica. Mas noutras tantas deixa perceber que a pessoa que se apresenta ali como um consumidor compulsivo de media apenas tresleu as peças ou jornais que depois destrói para quem o queira ouvir. Pior do que isso é a manifesta dificuldade que o Pacheco Pereira deputado do PSD tem em despir a pele de ilustre figura do universo social-democrata. É inevitável: por vezes a "agenda" salta do bolso. Nomeadamente quando se trata de analisar trabalhos jornalísticos que de alguma forma se relacionem com a esfera governamental: sim, esqueçam a análise imparcial quando se trata de colocar o foco numa peça que seja favorável a Sócrates. Recordo um episódio que roçou mesmo a caricatura, numa profunda análise semiótica a uma imagem do primeiro-ministro, em que quase vislumbrei um assomo da palavra "Verdade", acompanhada pelo logo do PSD, no púlpito que lhe serve de guarida em Carnaxide. Quanto a isenção, fiquei esclarecido.
Aqui chegados, e já que falo do Pacheco Pereira deputado, não posso deixar de considerar curioso que, no programa de hoje, um dos exemplo de "mau trabalho" tenha sido arquivado pelo Pacheco Pereira analista de media com o carimbo de "demagógico". Era um artigo do "DN" sobre as faltas dos deputados. "Demagogia", clamou Pacheco. Não porque fosse mentiroso, não porque não fosse factual, não porque enganasse os leitores: era "demagogia" porque o artigo colocava apenas numa caixa aquilo que Pacheco Pereira entendia ser o dado mais relevante (que, embora faltassem, os deputados estavam a faltar menos).
Demagogia, disse ele.
Eu, que tive o prazer de acompanhar grande parte das sessões da comissão de inquérito ao negócio PT/TVI, estranhei a ligeireza no uso de tal expressão. Levantei-me, fui ao dicionário da Porto Editora para ver se estava enganado, procurei, li e confirmei:
"demagogia"
nome feminino
1. submissão excessiva da actuação política ao agrado das massas populares;
2. processos servis de captar o favor popular;
3. abuso da democracia
(Do gr. demagogia, «direcção do povo»)
"Equivocou-se", pensei. Depois mudei de canal.
PS: No meio de tudo isto o que me provoca realmente alguma tristeza é o facto de já não termos um programa dedicado à análise, debate e crítica do jornalismo. Havia um na RTP2. Pelos vistos acabou. E este é outra coisa. Para pior.
20/7/10 16:24
DO ALTO DO MONTE-CONTO DE NATAL
... Pacheco deixa arrastar a âncora, perde o norte e encalha. Com a água pelo pescoço, agita-se freneticamente, mas não pede ajuda. Da sua boca, houve-se, disparadas, as palavras: «....Sócrates maldito... Corrupt… Soc.... glu.... glu.... gl....». Depois, silêncio. Do alto do monte, o velho assiste à cena e abana a cabeça. Um pensamento, todavia, absorve-o... nunca mais acabam com a publicidade no canal público… «Comenda!!!», berra, olhando ligeiramente por cima do ombro. O fiel amigo, ouvindo a voz do dono, aproxima-se correndo nas quatro patas e agitando a cauda num frenesim. O velho pousa a mão direita sobre a cabeça do cão e faz-lhe distraidamente uma festa. «Comenda...» diz novamente... … agora que a golden share vai à vida, o Belmiro pode outra vez tentar vender aquilo aos bocados e fazer uma pipa de massa,» e conclui com tristeza... «O país afunda-se». O rafeiro desanimado volta a deitar-se em cima do jornal. O velho cogita. A vida passou depressa. Como num filme agitado, imagens apressadas percorrem-lhe o pensamento. Olha novamente para o sítio onde desaparecera Pacheco. Nunca gostara muito dele. A situação piorara depois daquela insistência obsessiva com que alimentara os ódios dela e a conduziu àquela derrota estrondosa. Olhou demoradamente para o mastro que boiava no sítio do naufrágio. Julgou ver um objecto que emergia. Semicerrou os olhos, concentrando-se na imagem. Pareceu-lhe ver um dedo espetado, depois um punho e, finalmente, o corpo de Pacheco emerge de rompante à superfície separando as águas com estrondo. O mar devolvia Pacheco à vida. Os pulmões de Pacheco congestionados recusam-se a aceitar o sopro da vida. Pacheco estrebucha e consegue, num ronco cavo, começar a respirar. Os olhos arregalados percorrem a costa em redor, ávidos de vida. De repente, Pacheco avista o velho no alto do monte, e, na sua agitação, confunde-o com Deus. Não era Deus, longe disso, mas, para Pacheco, aqueles cabelos desgrenhados e a cara bexigosa personificavam o Criador e o milagre do seu regresso à vida. O mastro arrastado pela corrente dá à costa e, com ele, Pacheco. Sentindo terra firme, Pacheco beija a rocha e enterra fundo as mãos na areia. De repente, ouve uma voz. Era uma voz sem som, que se lhe cravava no cérebro. Uma voz simultaneamente maternal e paternal, que lhe fazia lembrar recordações de infância. Maternal porque o aconchegava, o acarinhava e lhe dava segurança. Paternal porque se tornava rapidamente exigente, não lhe dava espaço para solilóquios e o encurralava. Esta era mesmo a voz de Deus. “Pacheco”, disse a Voz, “Eu amo todas as coisas, vivas ou inertes. A uma espécie dei consciência e responsabilidade. Nesta espécie não dei a todos as mesmas condições de vida. Tu nasceste privilegiado, com carinho, bens materiais e numa família de antigas tradições. Cresceste e fizeste-te homem. No meio onde vives, foste considerado e admirado por fazeres muitas concessões à liberdade de pensamento e, fartas vezes, sorri quando abocanhavas aquele teu correligionário mulherengo.” Mas”, continuou a voz, “algo explodiu dentro de ti e, de repente, dei contigo a vociferar, escumar e arrastar a barriga pela lama. Pacheco, Eu não te fiz réptil! Devolvi-te a vida. Sê Homem.” Pacheco chorou primeiro silenciosamente, depois convulsivamente, mas o rosto resplandecia. O choro era de alegria, e murmurou: “Deus é grande”. E, na costa, vinda não se sabe de onde, espraia-se a Ode à Alegria do compositor surdo.
Publicada por Bettencourt de Lima
20/7/10 16:24
DO ALTO DO MONTE-CONTO DE NATAL
... Pacheco deixa arrastar a âncora, perde o norte e encalha. Com a água pelo pescoço, agita-se freneticamente, mas não pede ajuda. Da sua boca, houve-se, disparadas, as palavras: «....Sócrates maldito... Corrupt… Soc.... glu.... glu.... gl....». Depois, silêncio. Do alto do monte, o velho assiste à cena e abana a cabeça. Um pensamento, todavia, absorve-o... nunca mais acabam com a publicidade no canal público… «Comenda!!!», berra, olhando ligeiramente por cima do ombro. O fiel amigo, ouvindo a voz do dono, aproxima-se correndo nas quatro patas e agitando a cauda num frenesim. O velho pousa a mão direita sobre a cabeça do cão e faz-lhe distraidamente uma festa. «Comenda...» diz novamente... … agora que a golden share vai à vida, o Belmiro pode outra vez tentar vender aquilo aos bocados e fazer uma pipa de massa,» e conclui com tristeza... «O país afunda-se». O rafeiro desanimado volta a deitar-se em cima do jornal. O velho cogita. A vida passou depressa. Como num filme agitado, imagens apressadas percorrem-lhe o pensamento. Olha novamente para o sítio onde desaparecera Pacheco. Nunca gostara muito dele. A situação piorara depois daquela insistência obsessiva com que alimentara os ódios dela e a conduziu àquela derrota estrondosa. Olhou demoradamente para o mastro que boiava no sítio do naufrágio. Julgou ver um objecto que emergia. Semicerrou os olhos, concentrando-se na imagem. Pareceu-lhe ver um dedo espetado, depois um punho e, finalmente, o corpo de Pacheco emerge de rompante à superfície separando as águas com estrondo. O mar devolvia Pacheco à vida. Os pulmões de Pacheco congestionados recusam-se a aceitar o sopro da vida. Pacheco estrebucha e consegue, num ronco cavo, começar a respirar. Os olhos arregalados percorrem a costa em redor, ávidos de vida. De repente, Pacheco avista o velho no alto do monte, e, na sua agitação, confunde-o com Deus. Não era Deus, longe disso, mas, para Pacheco, aqueles cabelos desgrenhados e a cara bexigosa personificavam o Criador e o milagre do seu regresso à vida. O mastro arrastado pela corrente dá à costa e, com ele, Pacheco. Sentindo terra firme, Pacheco beija a rocha e enterra fundo as mãos na areia. De repente, ouve uma voz. Era uma voz sem som, que se lhe cravava no cérebro. Uma voz simultaneamente maternal e paternal, que lhe fazia lembrar recordações de infância. Maternal porque o aconchegava, o acarinhava e lhe dava segurança. Paternal porque se tornava rapidamente exigente, não lhe dava espaço para solilóquios e o encurralava. Esta era mesmo a voz de Deus. “Pacheco”, disse a Voz, “Eu amo todas as coisas, vivas ou inertes. A uma espécie dei consciência e responsabilidade. Nesta espécie não dei a todos as mesmas condições de vida. Tu nasceste privilegiado, com carinho, bens materiais e numa família de antigas tradições. Cresceste e fizeste-te homem. No meio onde vives, foste considerado e admirado por fazeres muitas concessões à liberdade de pensamento e, fartas vezes, sorri quando abocanhavas aquele teu correligionário mulherengo.” Mas”, continuou a voz, “algo explodiu dentro de ti e, de repente, dei contigo a vociferar, escumar e arrastar a barriga pela lama. Pacheco, Eu não te fiz réptil! Devolvi-te a vida. Sê Homem.” Pacheco chorou primeiro silenciosamente, depois convulsivamente, mas o rosto resplandecia. O choro era de alegria, e murmurou: “Deus é grande”. E, na costa, vinda não se sabe de onde, espraia-se a Ode à Alegria do compositor surdo.
Publicada por Bettencourt de Lima