Sobre o fantástico "milagre" de Fátima
Muitos milhares de pessoas estão neste momento em Fátima a celebrar um dos milagres mais fantásticos e notórios da história da Igreja Católica. Compreendo a necessidade de escapismo, sobretudo em momentos de grandes dificuldades, como tem acontecido em Portugal desde... digamos... 1917 (para não ir mais longe). No meu caso, em vez da religião, recorro à música - mas quem sou eu para julgar o escapismo dos outros?
No entanto, convém parar para pensar um bocadinho quando falamos do "milagre" de Fátima, que neste momento junta tantos milhares, entre eles o Presidente da República Portuguesa. Ninguém o fez melhor do que Richard Dawkins, professor da Universidade de Oxford que há-de seguramente arder no fogo do Inferno (se houver Inferno - e sobre isso a própria Igreja parece já ter algumas dúvidas). Enquanto isso não acontece, talvez Dawkins consiga abrir os olhos a mais uma ou duas almas.
«'[…] nenhum testemunho é suficiente para demonstrar um milagre, a não ser que o testemunho seja de natureza tal que a sua falsidade seja mais milagrosa do que o facto que tenta demonstrar.' David Hume, Dos Milagres (1748)
[Usarei] esta ideia de Hume no que diz respeito a um dos milagres melhor atestados de todos os tempos, um milagre que se afirma ter sido presenciado por 70 000 pessoas e recordado por algumas delas ainda vivas. Trata-se da aparição de Nossa Senhora de Fátima. Vou citar um website católico que refere que, das muitas aparições da Virgem Maria, esta é rara porque é oficialmente reconhecida pelo Vaticano:
"A 13 de Outubro de 1917 estavam mais de 70 000 pessoas reunidas na Cova da Iria, em Fátima, Portugal. Tinham vindo presenciar um milagre que tinha sido anunciado pela Virgem Maria a três jovens visionários: Lúcia dos Santos e os seus dois primos, Jacinta e Francisco Marto […] Pouco depois do meio-dia, a Nossa Senhora apareceu aos três visionários. Quando estava prestes a partir, apontou para o Sol. Lúcia repetiu o gesto, emocionada, e as pessoas olharam para o céu […] Depois, uma onda de terror varreu a multidão porque o Sol parecia romper-se dos céus e esmagar as pessoas horrorizadas […] Justamente quando parecia que a bola de fogo iria cair e destruí-los, o milagre parou e o Sol reassumiu o seu lugar normal, brilhando pacífico como nunca. "
Se o milagre do Sol em movimento tivesse sido observado apenas por Lúcia (a jovem que no fundo foi responsável pelo culto de Fátima), não haveria muita gente que o levasse a sério. Poderia facilmente ser uma alucinação individual ou uma mentira com motivos óbvios. O que impressiona são as 70 000 testemunhas. Será que 70 000 pessoas podem ser simultaneamente vítimas da mesma alucinação? Ou conspirar numa mesma mentira? Ou, se nunca houve 70 000 testemunhas, poderia o repórter do acontecimento safar-se ao inventar tanta gente?
Apliquemos o critério de Hume. Por um lado, é-nos pedido que acreditemos numa alucinação em massa, num artifício de luz ou numa mentira colectiva envolvendo 70 000 pessoas. Isto é reconhecidamente improvável, mas é menos improvável do que a alternativa: que o Sol realmente se moveu. O Sol que estava sobre Fátima não era, afinal, um Sol privado: era o mesmo Sol que aquecia todos os outros milhões de pessoas no lado do planeta em que era dia. Se o Sol se moveu de facto, mas o acontecimento só foi visto pelas pessoas de Fátima, então teria de se ter dado um milagre ainda mais notável: teria de ter sido encenada uma ilusão de não-movimento relativamente a todos os milhões de testemunhas que não estavam em Fátima. E isso se ignorarmos o facto de que, se o Sol se tivesse realmente deslocado à velocidade referida, o sistema solar se teria desintegrado. Não temos alternativa senão a de seguir Hume, escolher a menos miraculosa das alternativas disponíveis e concluir, contrariamente à doutrina oficial do Vaticano, que o milagre de Fátima nunca aconteceu. Além disso, não é de todo claro que nos caiba a nós explicar como é que aquelas 70 000 testemunhas foram enganadas.»
Quem estiver interessado, não deve perder a argumentação de Dawlins em A Desilusão de Deus (Casa das Letras) talvez o livro mais lúcido escrito neste século. Para o chamado contraditório, podem sempre ler a contra-argumentação em O Deus de Dawkins , de Alister Mcgrath (Aletheia). Aproveitai, pois estão ambos em promoção na Feira do Livro.
No entanto, convém parar para pensar um bocadinho quando falamos do "milagre" de Fátima, que neste momento junta tantos milhares, entre eles o Presidente da República Portuguesa. Ninguém o fez melhor do que Richard Dawkins, professor da Universidade de Oxford que há-de seguramente arder no fogo do Inferno (se houver Inferno - e sobre isso a própria Igreja parece já ter algumas dúvidas). Enquanto isso não acontece, talvez Dawkins consiga abrir os olhos a mais uma ou duas almas.
«'[…] nenhum testemunho é suficiente para demonstrar um milagre, a não ser que o testemunho seja de natureza tal que a sua falsidade seja mais milagrosa do que o facto que tenta demonstrar.' David Hume, Dos Milagres (1748)
[Usarei] esta ideia de Hume no que diz respeito a um dos milagres melhor atestados de todos os tempos, um milagre que se afirma ter sido presenciado por 70 000 pessoas e recordado por algumas delas ainda vivas. Trata-se da aparição de Nossa Senhora de Fátima. Vou citar um website católico que refere que, das muitas aparições da Virgem Maria, esta é rara porque é oficialmente reconhecida pelo Vaticano:
"A 13 de Outubro de 1917 estavam mais de 70 000 pessoas reunidas na Cova da Iria, em Fátima, Portugal. Tinham vindo presenciar um milagre que tinha sido anunciado pela Virgem Maria a três jovens visionários: Lúcia dos Santos e os seus dois primos, Jacinta e Francisco Marto […] Pouco depois do meio-dia, a Nossa Senhora apareceu aos três visionários. Quando estava prestes a partir, apontou para o Sol. Lúcia repetiu o gesto, emocionada, e as pessoas olharam para o céu […] Depois, uma onda de terror varreu a multidão porque o Sol parecia romper-se dos céus e esmagar as pessoas horrorizadas […] Justamente quando parecia que a bola de fogo iria cair e destruí-los, o milagre parou e o Sol reassumiu o seu lugar normal, brilhando pacífico como nunca. "
Se o milagre do Sol em movimento tivesse sido observado apenas por Lúcia (a jovem que no fundo foi responsável pelo culto de Fátima), não haveria muita gente que o levasse a sério. Poderia facilmente ser uma alucinação individual ou uma mentira com motivos óbvios. O que impressiona são as 70 000 testemunhas. Será que 70 000 pessoas podem ser simultaneamente vítimas da mesma alucinação? Ou conspirar numa mesma mentira? Ou, se nunca houve 70 000 testemunhas, poderia o repórter do acontecimento safar-se ao inventar tanta gente?
Apliquemos o critério de Hume. Por um lado, é-nos pedido que acreditemos numa alucinação em massa, num artifício de luz ou numa mentira colectiva envolvendo 70 000 pessoas. Isto é reconhecidamente improvável, mas é menos improvável do que a alternativa: que o Sol realmente se moveu. O Sol que estava sobre Fátima não era, afinal, um Sol privado: era o mesmo Sol que aquecia todos os outros milhões de pessoas no lado do planeta em que era dia. Se o Sol se moveu de facto, mas o acontecimento só foi visto pelas pessoas de Fátima, então teria de se ter dado um milagre ainda mais notável: teria de ter sido encenada uma ilusão de não-movimento relativamente a todos os milhões de testemunhas que não estavam em Fátima. E isso se ignorarmos o facto de que, se o Sol se tivesse realmente deslocado à velocidade referida, o sistema solar se teria desintegrado. Não temos alternativa senão a de seguir Hume, escolher a menos miraculosa das alternativas disponíveis e concluir, contrariamente à doutrina oficial do Vaticano, que o milagre de Fátima nunca aconteceu. Além disso, não é de todo claro que nos caiba a nós explicar como é que aquelas 70 000 testemunhas foram enganadas.»
Quem estiver interessado, não deve perder a argumentação de Dawlins em A Desilusão de Deus (Casa das Letras) talvez o livro mais lúcido escrito neste século. Para o chamado contraditório, podem sempre ler a contra-argumentação em O Deus de Dawkins , de Alister Mcgrath (Aletheia). Aproveitai, pois estão ambos em promoção na Feira do Livro.
13/5/10 22:43
O livro mais lúcido do século, FSC? Bom, para um século que só leva 9 anos, teria sido - como dizê-lo... - mais realista referir qualquer coisa como "o livro mais lúcido da última meia-duzia de anos". E, já agora, dos que tiveste oportunidade de ler...
Talvez seja um preciosismo, mas é que tais exageros são mais próprios de pessoas religiosas. Como eu!
Abraços
14/5/10 12:54
Não diria o mais lúcido. O mais elucidativo. Porém, toldada a mente, não há razão que nos valha!
Gostei. Continuem.
14/5/10 17:41
Caro DBH, ambas as as ressalvas que fazes estão, evidentemente, implícitas no que escrevo: é evidente que o século tem os anos que tem, não há nada a fazer sobre isso, e é evidente que só posso fazer comparações em relação aos outros livros que li, e não em relação aos que não conheço.
Em todo caso, tens razão: a religião conduz a exageros, e essa é uma das boas razões para eu não gostar de religiões.
Mas obrigado pelo olhar clínico, que denuncia o editor que há em ti. Se correr mal na política, já sabes...
Abraços
14/5/10 17:44
Acabo de reparar que no post escrevi "talvez o livro mais lúcido...". Esse "talvez" talvez me ilibe da acusação de exagero, não DBH? :)
14/5/10 18:30
Bi-Bravo! Pelo artigo, e pelo apreço (que pelos vistos ambos partilhamos) por Richard Dawkins.
A talho de foice, recomendo vivamente outras obras do autor, como por exemplo "The Blind Watchmaker" ou "The Ancestor's Tale". São faróis de lucidez e racionalidade neste mundo de facciosismo (não só religioso).
22/5/10 11:40
Uma das questões que se coloca é saber porque existem pessoas para as quais a opinião desse senhor Dawkins é mais importante do que os milhares que presenciaram o milagre. Tudo é relativo... A verdade é que nós só acreditamos naquilo que queremos, naquilo que nos dá mais jeito, naquilo que no nosso intimo sabemos ser o mais correcto. E até me arriscava a dizer o que é mais fácil... Mas o certo é que aquilo que nós pensamos ser a verdade raramente o é.
Sinceramente, acho que se "alguém" fizesse um milagre realmente extraordinário à frente do senhor Dawkins, duvido que ele algum dia se convertesse. E isto aplica-se infelizmente para muitos de nós.